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Histórias de Indaiá
03/01/2014 15:39HISTÓRIAS DE INDAIÁ
catiagarcez@hotmail.com
Gostaria de apresentar aos leitores do Jornal do povo a ilustríssima Indaiá, uma velha de 90 anos que mora numa gruta lá pros lado de Riacho Claro... Teve filhos, mas não vingou, diz que o tempo levou “pra mode” não fazer coisa errada. Indaiá não gosta de conversa fiada, nem tão pouco de contar sobre a própria vida. Mora sozinha e pronto. Cala-se zangada fazendo birra, na tentativa de me persuadir a desistir da entrevista. Respiro fundo, tentando ser paciente com a coitada de meia idade. Meia? Como uma pessoa de quase um século pode ser considerada de meia idade? Idosa? Sei não... Idoso parece sempre ser tão simpático. Indaiá não era. Feiosa com uma verruga de bruxa bem na ponta do nariz, cabelos finos e assanhados soltando do coque atrás da nuca, vestido gasto que um dia havia sido azul e os chinelos de couro escuro e remendados com pedaços de cordão. As rugas do rosto de Indaiá eram tão profundas que pareciam cicatrizes. Certamente cicatrizes do tempo. Mas apesar da pouca simpatia, sobrava sabedoria. Conhecia folhas, raízes e sementes como ninguém. No fundo da gruta, fizera uma estante com lascas de madeira e lá podia ver dezenas de frascos de vidro com sementes e folhas secas não identificadas por que Indaiá não sabia ler.
Depois de muitas peripécias para arrancar as informações sobre os chás feitos por Indaiá, consegui a minha entrevista com fins a transcrever aqui, trechos mais relevantes e que considero de utilidade pública.
-Bom dia Dona Indaiá- Cumprimentei enquanto curvava o corpo para adentrar a gruta. Lembrei agora de dizer que aquela estranha mulher tinha exatos um metro e trinta centímetro. A impressão que me passava era de que havia sido mais alta no passado e encolhera com o passar dos anos.
-Chegue... Cheque pra dento fia. -Respondeu com uma voz grave e vagarosa. Falou isso enquanto chamava com a mão pequena, lembrando a velha da história de João e Maria. Os meus medos infantis ainda registrados na memória dispararam um alerta de perigo e imediatamente imaginei-me dentro de uma grande tina, com a velha em volta temperando e experimentando com uma grande colher de pau, o caldo da “sopa de mim”. Balancei a cabeça, tentando afastar o pensamento e me apresentei, dizendo que havia sido encaminhada pela sua comadre Maria.
- Vamos conversar? - Perguntei tentando ser simpática e a velha sem demonstrar qualquer interesse em colaborar respondeu:
- E nós já não tá? Sente moça... Pode sentar que o tempo não há de passar.
Percebi ali que a conversa não seria fácil. Indaiá andava arrastando um pouco a perna direita, mas sem fazer qualquer expressão de dor. Andou em direção ao fogão de lenha, juntou a madeira para alimentar o fogo e destampou a panela de onde saia um barulho de fervura e um cheiro bastante familiar.
-Gosta de sopa moça? Só tá um pouco rala, não achei um ossinho pra engrossar.
- Deus Misericórdia! Percebi ali, que aquela seria uma grande experiência se caso sobrevivesse, mas o espaço aqui é pequeno e deixo para outro momento para contar, segundo Indaiá, sobre os benefícios da folha de Capeba para quem sofre de problemas no fígado.
Enquanto tomava a sopa em um prato de barro com uma colher de pau rasa, a velha senhora me falava sobre suas ervas e folhas. Falou que antes era muito procurada pela comunidade para fazer reza e chá, mas com o tempo pareciam ter esquecido a sua existência. Comentou, sem qualquer sentimento de pesar, que já faziam mais de oito meses que não recebia nenhuma visita. Quando perguntei o porquê, respondeu que era pela falta de fé do povo: nas folhas, na reza e na velhice. “Aqui nessa terra ocê pode ser veio, mas não muito... depois de veio ninguém mais escuta ocê.”
Sobre a mesa onde repousara o prato da sopa, estavam espalhadas as folhas da capeeba, uma planta nativa brasileira, abertas para secar e depois serem colocadas para infusão. Explicou ainda que o verde das plantas prejudicam o intestino e que os chás são mais eficientes se tomados de infusão, sem ferver a água. Pedi que me mostrasse. Indaiá colocou uma chaleira preta e amassada no fogo com água que retirara de uma talha de barro. Quando a água chegou ao ponto da pré-fervura, a mulher retirou a chaleira do fogo, colocou pedaços da folha da caapepa já seca e voltou a tampar. Explicou que a planta serve para curar problemas no fígado, rins, vesícula e baço. Enquanto falava, a anciã mostrava no próprio corpo onde localizava cada parte citada. Afirmou ainda que o uso da planta ajuda no tratamento também de azia, mau digestão e que inclusive serve para lavar feridas e furúnculos, pois tem ação anti-inflamatório.
A velha Indaiá riu quando questionei se teria mesmo 95 anos. Um riso rouco de violão desafinado: “Oi fia, no papé mermo, diz que tenho noventa de idade. Isso diz, quem sabe lê o meu papê,(referindo-se à certidão de nascimento) mas como eu num sei fazer a conta”. Sua voz silencia como se estivesse lembrando algo importante e depois de um longo suspiro de quem não vê relevância no assunto, volta a falar: “Espie...Uma vez apareceu aqui, um povo parente. Não conhecia ninguém. Me chamava de tia e de vô e queria, por que queria, arrastar eu pra uma brincadeira. Daquela que a famia reúne pra festejar niversário, sabe? Disseram que era do meu irmão chamado Domingo, que eu nem sabia que ainda tava vivo, de tanto tempo que tinha, que não via. Não fui! Na juventude só gostava de brincar no samba, mas não disse pra eles, se não, os parente enganava a veia, dizendo que tinha samba sem ter (gargalhada). Eu não sou besta... Foi assim, quando chegaram disse pra eu, que esse irmão domingo ia fazer cem anos, isso foi no ano que aquele moço bom morreu.”
Olhou para mim esperando que eu soubesse de quem se tratava e explicou: “Aquele coitado, que Deus chamou antes de sentar na cadeira pra comandar o Brasil. Eu me lembro pro mode que assistir tudo na radia... Não esqueço a voz triste do moço, dando o aviso da morte de Seu Tancredo. Acho que era esse o nome dele, Cê sabe fia?”
- Sei. - Respondi torcendo para que não parasse de falar. E Indaiá continuou: “Pois foi isso... Foi nesse ano, na primavera. Eu sei que eu era uns ano mais veia que Domingo e quando uma sobrinha disse que Domingo já tinha cem de idade eu pensei: Misericórdia, que eu já tô boa de morrer!” Neste momento fixa o olhar em mim, como se quisesse adivinhar meus pensamentos e depois, em sinal de cansaço, deixa a cabeça tombar para a frente do corpo. Lentamente deixa-se sentar num banco próximo à mesa. Passa a mão direita pelos cabelos desalinhados num segundo eterno de silêncio e conclui com um vazio no olhar: ‘No certo mermo, nun sei em que ano eu nasci”. Mas para tentar quebrar o silencio, perguntei se Indaiá havia encontrado o irmão depois disso e resmungou contrariada: “ Pro mode de quê, fia? Quando ocê vive muito tempo longe do passado é mio deixar o passado onde tá”.
Respirei fundo, tentando organizar as ideias e fiquei me perguntando quantos anos de vida teria aquela mulher. Se o irmão de Indaiá fizera cem anos em 1985, ano da morte de Tancredo Neves e era mais novo que Indaiá, hoje ele teria 128 anos e Indaiá teria... Uma coisa era certa: aquela mulher esquecera de morrer.
Andando em direção à entrada da gruta e pude ver que o sol já estava a se por, atrás das colinas. Seus raios alaranjados tingiam a vegetação rasteira em volta da gruta e as árvores ganhavam um ar fantasmagórico com galhos que pareciam extensão de longos braços em minha direção, enquanto as sombras alongadas das árvores se arrastavam pelo chão, como se quisessem adentrar a terra e repousar.
Meus pensamentos foram interrompidos pela aproximação da velha senhora. Sua respiração era leve, com um leve chiado como numa cantiga de ninar.
-“Tá ispiando o que fia?”- Perguntou Indaiá, quase se encostando ao meu pescoço. – “Tá oiando o sol se deitar? Bonito né? Na cidade ninguém mais oia essas coisa que Deus faz! Na hora que o sol se levanta os home tão procurando qui fazer e na hora que o sol se deita, os home tão cansado dimais pra perceber. Eu aqui na minha gruta posso oiá essa bola grande fazendo a vorta no mundo e em cada dia parece um firme diferente.”
Fiquei imaginando quanta sabedoria tinha aquela mulher. Perguntei se já havia ido ao cinema. Respondeu que tinha visto um filme em preto e branco em um cinema mambembe na década de sessenta. Perguntei se ela ia muito ao centro da cidade e riu alto, muito mais para si mesma, do que para mim.
- “Oi fia, parece que ocê num percebeu onde eu moro. Cè nun viu a caminhada que deu pra chegar até aqui”?
Nesse momento lembrei que havia deixado meu carro no lugar onde terminava a estrada. Corri para dentro, apanhei minha bolsa e saí correndo até alguns metros da entrada da gruta e parei. Era incrível como a escuridão tomara canta de todo aquele cenário. Apenas podia-se ver uma pequena claridade no horizonte, e o resta era breu. Mais uma vez pude ouvir a voz de Indaiá me chamando, dizendo que estava muito escuro e que era perigoso sair andando sozinha. Não respondi, tentando organizar as ideias. Tinha que ligar para alguém pedindo auxílio e logo concluí que ninguém acharia aquele lugar durante a noite. Novamente ouvi a voz de Indaiá e dessa vez quase desmaio de susto, quando sentir sua mão tocar as minhas costas.
- “Vorte pra dentro da gruta, que tá mais seguro...”
Fui arrastada pra dentro da gruta, que estava iluminada apenas pelo fogão de lenha, que ainda mantinha algumas chamas. Indaiá alimentou o fogo com lascas de madeira e ficou me olhando em silêncio. Parecia que lia os meus pensamentos e o terror que tomava conta de mim. Não queria dormir naquela gruta, mas não tinha escolha a não ser esperar amanhecer.
- Espero que a senhora não se importe de me hospedar essa noite. – Falei na tentativa de me desculpar pelo incomodo, mas a velha me interrompeu.
- “Ocê num queria conversar sobre as folha... Então sente, que temos uma longa noite pela frente.”
Senti vontade de um café forte, mas Indaiá me serviu chá. Explicou que não dormia muito, apenas algumas horas por noite. Tentei dizer que também sofria de insônia, mas os bocejos me traiam. Ainda não passada das 19 horas e meu corpo pedia cama. A velha sorriu para mim:
- “Foi o chá que ocê tomou! A folha da laranjeira é um santo remédio pra acalmar e fazer dormir! Vem fia, deita alí na rede que eu me arrumo em qualquer lugar.”
Eu estava dopada. Queria argumentar que não era justo tirá-la de sua rede, mas a velha insistiu e não tive forças para contrariá-la. Deitei na rede e a velha se aproximou com uma coberta surrada cobrindo-me, lembrando-me do tempo de criança. Bem, mesmo tendo consciência que eu estava nas mãos daquela estranha mulher, não tive medo e me deixei seduzir pelo efeito da bendita folha de laranja, enquanto ouvia a voz de Indaiá cada vez mais distante: “Pode dormi, que aqui cê tá segura!” - E adormeci profundamente.
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