ARTE, CULTURA E AUTOCONHECIMENTO PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA


Dramaturgia do teatro amador do oral para o escrito.

02/01/2012 16:12

 

TEXTO DRAMÁTICO NO TEATRO AMADOR: DO ORAL PARA O ESCRITO

 

Cátia Cristina Santana Garcez [1]

RESUMO

 

Este trabalho apresenta-se como reflexão sobre a metodologia usada para realizar o registro histórico do Teatro na Bahia e como se apresenta a dramaturgia  existente no interior do estado representada pela oralidade dos escritores que estão à margem da literatura oficial.

 

Palavras-chave: Modos de Produção, literatura, dramaturgia, oralidade, vozes silenciadas

 

INTRODUÇÃO

Para registrar o que ocorre com o teatro no interior do Estado da Bahia se faz necessário considerar uma historicidade não cronológica contada de forma não linear e embasada em um arquivo iconográfico composto pelas fotografias dos espetáculos, dos processos de construção de montagem e das imagens de cartazes elaboradas artesanalmente para divulgação das temporadas teatrais. Estas imagens dos espetáculos com os textos escritos retratam a relação entre iconografia e imaginário, através de motivos quotidianos, relacionados à etapa da vida dos agentes de teatro do interior do Estado. Neste espaço, discorreremos sobre como se apresentam as questões sobre o teatro baiano, principalmente as características específicas do teatro no interior do estado.

OBSTÁCULOS SIMBÓLICOS DE AUTO-AFIRMAÇÃO

Um aspecto que dificulta o relato de uma história de teatro na Bahia é o conjunto de convicções que localiza a origem do teatro na Grécia. Ultrapassada, pela constatação da existência do teatro entre várias outras civilizações, a exemplo da civilização japonesa que nada deve ao teatro Grego.[2] Sábato Magaldi, ao explanar sobre a falta de reconhecimento externa de um teatro brasileiro[3], faz uma pergunta, que nos dá uma idéia de como a concepção de metrópole, como origem dos acontecimentos influencia na história: “Se não se realiza um grande teatro, na metrópole, como reivindicá-lo para um país colonizado”. Grosso modo, isso se dá em várias estruturas com o reconhecimento de uma história do teatro nas capitais, registrada de forma alheia aos acontecimentos teatrais nos municípios e assim não é diferente quando se fala do teatro baiano.

Toda esta complexidade se dá, quando se fala do teatro oficial, aquele respaldado pela mídia e que faz circular a economia da cultura, de forma visível e economicamente viável. O teatro dito oficial concentra os recursos públicos e atende aos anseios de uma sociedade capitalista. Imaginemos então, o quanto mais complexo será relatar a história do teatro Amador na Bahia, que diz muito mais respeito, a uma forma particular de tomada de consciência política e que, na maioria das vezes, utiliza-se da cultura popular como elemento de sua realização, objetivando a transformação social, organizada de baixo para cima e emergindo das classes subalternas[4].

Escrever sobre a história do teatro na Bahia obriga ao pesquisador a desprender-se de um único lugar como afirma Foucault[5]: “Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí procurar sua lei e a isto submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha”. Esta é uma tarefa árdua, principalmente por a Bahia ser um Estado com 417 municípios e com uma extensão geográfica que dificulta o trabalho de coleta de dados.

Considerando a extensão territorial do estado da Bahia, limitamos nosso campo de pesquisa, aos estudos dos modos de produção de alguns grupos de teatro associados à Rede do Movimento de Teatro Amador da Bahia.[6] Isso inclui os municípios de Euclides da Cunha, com as Companhias Farinha Seca e FOCO; Camaçari, com o Bando de Teatro Resistência e o Núcleo Cênico Ca&Ba; Pojuca, com o Grupo De Lá Pra Cá; Madre de Deus, com o Grupo Brilho do Sol; Candeias, com o Grupo Afincerart; Santo Amaro da Purificação, com o Grupo Teatral Amor a Arte; Simões Filho, com o Grupo de Teatro Dandara; São Francisco do Conde, com os grupos Monte Arte e São Bem’Art; Juazeiro, com o Grupo de teatro e Dança Nego D’água e por último o GOTS - Grupo Oficina de Teatro de São Sebastião do Passé, o qual faz parte[7].

A delimitação do campo de pesquisa não exclui o reconhecimento da influência dos outros grupos destes e de outros municípios filiados ou não a Rede de teatro, aos quais tivemos acesso no decorrer desta pesquisa.[8] Pudemos catalogar mais de 100 grupos de teatro associados à Rede, todos na ativa, montando ou circulando com espetáculos. Isso dá uma idéia da grande dimensão do movimento teatral no interior do Estado. Forçando-nos a entender que esta História, que hora pretendo abordar, também não representa a história do teatro da Bahia, mas apenas fragmentos ou mesmo história de alguns lugares da Bahia como assim exige a genealogia, não como uma pesquisa da origem do teatro, mas como desdobramentos de várias histórias

 É necessário entendimento de que existem várias histórias e que, a história aqui contada representa um lugar negado, subtraído. Negação essa que serve ao engrandecimento de uma logística cultural capitalista e impede a emersão do oprimido que se utiliza da arte para garantir qualidade de vida, não só para si mesmo, mas para uma coletividade. Não se trata apenas de contar a história do fazer teatral, mas de uma mobilização de resistência artístico e social que envereda pela cultura e a crítica cultural para responder questões sugeridas por Santaella: como, onde, quando e para quem a cultura é produzida?[9]

 OUTRA HISTÓRIA DO TEATRO BAIANO

Como já foi dito, contar a história do teatro na Bahia seria o mesmo que contar 417 histórias. Desprendendo-se de uma busca por uma origem do teatro na Bahia, podemos perceber que assim como Salvador, apresenta uma história do teatro, registrada a partir dos principais Teatros da capital e pela Escola de teatro da UFBA[10], assim também, cada município tem a sua história de teatro, às vezes reduzidas à caminhada de um grupo e outras vezes representadas por um movimento teatral intenso, tanto quanto a capital do estado.  Como exemplo, podemos citar a cidade de Candeias, município da região metropolitana de Salvador, que possui um único grupo de teatro com circulação de espetáculos nos últimos dez anos e Euclídes da Cunha, município do semi-árido nordeste II, que possui vários grupos de teatro e inclusive um festival regional.

Os festivais de teatro realizados nos últimos 10 anos em municípios como Camaçari[11], Pojuca[12], Lauro de Freitas[13], Euclides da Cunha[14], entre outros, reforçam um movimento teatral forte no interior do estado, mas que não é considerado como um movimento legítimo do teatro Baiano, porque não foram veiculadas nas grandes redes de comunicação, como as emissoras de TV, rádio e imprensa escrita. Certamente a propagação e reconhecimento vêm sendo acelerado, se comparado aos últimos vinte anos, devido ao acesso desses grupos ao ciberespaço, como se pode notar através dos blogs produzidos pelos próprios grupos como forma de resistência á exclusão da mídia convencional.

 De ponta a ponta do estado, encontramos grupos de teatro nos mais variados estágios estéticos e artísticos como os que ocorrem com o Grupo Resistência de teatro[15].

 “Fomos para Minas Gerais. Premiação de melhor espetáculo. Melhor direção nacional. Com “Fim de partida”. Melhor espetáculo de rua com “A filha que bateu na mãe e virou cachorra” com melhor atriz Telma Marques. Ganhamos melhor atriz de palco: Elisangela Sena. Foram nove prêmios importantes, mas em compensação foi a minha pior dor. Quer dizer, nunca o Resistência foi tão feliz profissionalmente e pra mim foi a maior dor porque as pessoas que estavam comigo desde o início estavam saindo do grupo “[16]

O depoimento de Tony de Souza mostra as dificuldades que os grupos do interior do Estado vivenciam no seu cotidiano. No caso do Resistência, apesar do êxito das montagens, até hoje, tem como prática a renovação do seu elenco através das oficinas realizadas pelo diretor cênico. Dessa forma não negaremos nenhuma história, nem tão pouco nenhum fato, que nos instigue em cair na tentação, enquanto pesquisadora, de achar isso ou aquilo relevante para essa história. Aqui, tudo é relevante. Desde os grupos como O Resistência de Teatro que possui circulação internacional até os grupos que montam seus espetáculos apenas para sua comunidade comemorando datas simbólicas e da cultura local, como é o caso da história de Reinaldo[17]:

“Aí, uma certa vez, eu tava lá, sentadinho, assistindo, aí o diretor, que era José dos Santos, popular “Piaba”, (todo mundo conhece no município), ele olhou para mim: - Você venha fazer uma coisa aqui, quando ele lhe perguntar (uma frase, interessante que até hoje ainda lembro), você diz assim: - Quem é você, é o Messias ou o Profeta? Você vai perguntar essa frase a Jesus, quem é você, é o Messias ou o profeta? – Então, desde os sete anos de idade, que eu ainda me lembro dessa frase né, então assim foi meu primeiro espetáculo. ”[18]

 

E que hoje é produtor cultural na sua região, até os grupos que circulam pelo país ou para fora do Brasil.

Espetáculos como “Graxeiras graças a Deus”, texto de Luiz Gomes e direção de Fernando Marinho da Companhia de teatral Drasol, de Feira de Santana, estão em Cartaz a mais de 15 anos, com temporadas dentro e fora do país. O espetáculo, apesar de a direção ser assinada por um nome da Capital Baiana, o fato de ter um elenco do interior (Marcio Sherrer, José Guedes e Adriano Lima) foi o suficiente para que passassem despercebido pelos meios de comunicação do estado, alheios ao sucesso de bilheteria tão pulsante quanto a exemplo do espetáculo A Bofetada, do mesmo diretor, mas com elenco que reside na capital.

Outro exemplo da falta de reconhecimento do teatro no interior do estado, que podemos citar é o espetáculo As Bondosas, do Grupo de teatro Resistência do município de Camaçari. Direção de Tony de Souza, texto de Ueliton Rocon e  elenco composto por Juarez Alves, Michael Oliveira e Marih Araújo[19], o espetáculo  permanecem em cartaz por vários municípios do interior Baiano, após apresentações em capitais como Rio de Janeiro e uma temporada em Portugal. Esses espetáculos não estão em evidência quando se fala de teatro na Bahia, uma das propostas deste texto é possibilitar o reconhecimento destas vozes silenciadas.

 A principal ponto em comum entre os grupos citados (Drasol e Resistência) e a articulação dos elencos em se auto produzir e fazer circular os seus espetáculos dentro e fora do Brasil. No entanto, esses dois grupos possuem particularidades que merece aqui destaque: Os dois possuem um espetáculo âncora, que os impulsiona e estimulam na perseverança de continuar fazendo teatro; Os elencos dos dois espetáculos, tanto “Graxeira graças a Deus” quanto “As Bondosas” não estão mais vinculadas a seus diretores, apesar de manterem os nomes de Fernando marinho e Tony de Souza no material de divulgação das temporadas mais recentes.

 No caso da Companhia Drasol, o elenco trabalha com cultura e arte educação para sobreviverem e mantém o espetáculo “Graxeira graças a Deus” a mais de vinte anos circulando. Além disso, montam outros espetáculos dirigidos pelo elenco, na maioria das Vezes por Marcio Sherer, que na verdade são montras de oficinas realizadas com o público infanto-juvenil de um projeto de teatro, em parceria com a Prefeitura no município de Feira de Santana.

O elenco do espetáculo “As Bondosas” atualmente perdeu o vinculo com do bando de Teatro Resistência. Um dos seus membros passou a fazer a produção da montagem; algo comum no teatro amador; e o espetáculo passou a circular com pequenas temporadas de produção própria e participando de festivais. A produção desse espetáculo foi uma das que mais se destacou enquanto articulação com a Rede para a circulação desse espetáculo. Juarez Alves, participa de todos os Fóruns organizados pela Rede de teatro, utilizando-se do evento como um instrumento de marketing para “As Bondosas”, firmando contratos e articulação de produção de espetáculo nos municípios ali representados.

O Bando de teatro Resistência, apesar de ter no espetáculo “As Bondosas” um elo de enriquecimento para seu currículo, segue com outro elenco, selecionado a partir de oficinas, Como afirma o seu diretor:

 “A idéia de bando são aves seguindo a mesma direção, um ajudando o outro. Para fazer parte, o candidato precisa passar por todo um ritual, escolher um componente do grupo para ser seu padrinho, que vai ser responsável pelo seu enteado para lhe passar ensinamentos e forças. O aluno iniciante ainda não é bando. Ele tem que mostrar dedicação, comparecer aos ensaios e após um período, os mais velhos do grupo se reúnem e decidem se ele merece ou não fazer parte do bando” [20].  

 Como exemplo de espetáculos montados pelo Bando, citamos: em 2008, o espetáculo “Medeia”, baseada na obra de Eurípedes; em 2009, o espetáculo infanto-juvenil “Gato malhado e Andorinha Sinhá”, texto de Zélia Gattai e em 2010, o espetáculo infantil “Dragão Ball” baseado nos filmes animados da série de anime dragon Baal[21] criados no Japão pela Toiei Animation, sendo que as três montagens, assim como “As Bondosas” foram adaptadas e dirigidas por Tony de Souza.

 

 

A DRAMATURGIA DO TEATRO AMADOR

 

Um aspecto relevante a ser tomado como ponto de partida do historiador que se propõe a escrever a história do teatro na Bahia, são os textos escritos pelos grupos de teatro do interior do estado. Em Euclídes da Cunha, encontramos Carlos Carneiro, agente municipal de saúde, diretor de teatro e dramaturgo. Em Madre de Deus encontramos Jorge do Espírito Santo, produtor cultural, animador, palhaço, diretor teatral e dramaturgo e em Santo Amaro da Purificação, entrevistamos Iacson de Jesus, guia de turismo, palhaço, animador, diretor teatral e dramaturgo.

Dos três dramaturgos aqui citados, apenas Carlos Carneiro forneceu um texto escrito, os outros, apesar de falar sobre esses textos e com bastante apropriação (até porque  foram montados e apresentados) não conseguiram até o momento  fornecer nenhum tipo de produção escrita alegando estar organizando este material.

Além do currículo declarado pelos próprios agentes teatrais, estes três diretores tem algo muito em comum: as estruturas do processo de criação se dão através da demanda do meio em que vivem. Assim, podemos identificar alguns aspectos que influenciam a criação destes autores: Primeiro a necessidade de catequese cristã. Nos trabalhos que tivemos acesso,meste caso nas filmagens dos espetáculos, os autores usam os dogmas cristãos, como embasamento da ética, dando sempre um aspecto de moral a ser passada no final do texto e também das montagens. Há na maioria dos casos, uma mediação entre a linguagem e a religiosidade, em formato de melodrama com esvaziamento do psicológico nos personagens, características citadas por Martin-Barbero[22].

Outro aspecto que influencia a concepção textual, na forma de escrever dos escritores da Rede é a criação do texto com base no elenco disponível. Em entrevistas, os autores declararam que os textos são criados com a mesma quantidade de atores que o grupo tem disponível. Como não podem pagar seus atores, fica inviável a montagem com maior número de personagens, que o número de atores disponíveis.

Relevante também é a coerência que os diretores necessitam ter quando vislumbram fazer uma circulação dos seus espetáculos fora de sua região ou estado. Poucos personagens, em uma peça de teatro é fator significativo, para garantir sua montagem e circulação. Como normalmente os grupos de teatro amador não possuem recursos apropriados para estes empreendimentos, os escritores do teatro amador preferem compor seus textos com poucos personagens, viabilizando assim uma operacionalidade e contenção de gastos com a circulação dos espetáculos.

 Como terceira característica destas produções dramáticas, identificamos a forma como surge o tema dos espetáculos: A peça é construída a partir de uma demanda da comunidade onde atua, seja ela vinda de uma ação de discriminação que precisa ser trazida para o debate público, como é o caso do texto Brega e Chique de Carlos Carneiro:

ASTROGILDA- Seu cachorro, pêra aê que você vai ver, (estapeando-o) junte seus pano de bunda, pegue suas tralhas e suma de minhas vista e não leve nada de dentro de casa, só seus mulambo. Se quiser vá procurar o promotor, mas sei que os direito é meu, foi eu que me lasquei lavando roupa de ganho, ainda bem que não pari de um traste desse, um infeliz que não vale um tostão furado.
JORJÃO- Não vou embora não, a casa também é minha...[23]
 

ou uma questão de saúde pública, como é o caso do Texto “Lama Negra no Recôncavo”, de Iacson de Jesus:

“Lama Negra no Recôncavo” fala sobre um homem que vivia na roça e foi trabalhar na cidade e foi trabalhar numa loja de metais pesados, como chumbo e nessa ida para lá ele acabou se contaminando.”  e “Pelo chumbo né” e  ainda “Quem for a Santo Amaro procurar a AVINCA, é a associação das vítimas de contaminação de chumbo e metais pesados. Certo? E tem fotografia, registros desde aquela época que o chumbo prejudicava a comunidade e até hoje está prejudicando. Hoje tem mais de 300 viúvas dessa fábrica e infelizmente não é feito nada”.[24]

ou ainda com temas preocupados com a preservação da natureza, como o texto “A natureza morta”, de Jorge Crispiniano de Almeida [25]:

“A natureza morta, escrito por mim também, que estreou na transpetro a empresa e... auxiliar da Petrobrás, que fala da destruição do meio ambiente e a própria natureza. O personagem carijó, que é feito por nosso amigo Emerson Dúkel. Ele diz realmente ao ser humano quem é o culpado da natureza está morta”.[26]

 Respectivamente das cidades de Euclídes da Cunha, Santo Amaro da Purificação e Madre de Deus, os três dramaturgos se conheceram nos eventos da Rede de teatro Amador da Bahia dando visibilidade as montagens destes textos.

Os Bregas e Chiques de Carlos Carneiro é um texto com quatro laudas e que gerou quarenta e cinco minutos de espetáculo. No texto, como o título sugeri, apresenta a comparação de dois estilos de vida, a partir do olhar de duas mulheres: uma pobre e outra rica. Os extremos são colocados propositadamente de forma escrachada para provocar o riso. Apesar de o espetáculo ter uma estrutura de comédia, está claro que o autor, usa o estilo para abrandar a forma fotográfica como mostra a disparidade entre as classes sociais nono espetáculo.

Outro aspecto em comum entre os dramaturgos da Rede de teatro são as dificuldades que encontram na escrita e na estrutura textual escrevendo apenas o estritamente necessário, tanto nas réplicas quanto nas rubricas, reforçando o que afirma Pound[27]: “O segredo dos autores populares é não meter numa página mais do que o leitor comum possa engolir além da sua atenção habitualmente relaxada.”. Os textos dramáticos do teatro amador são elaborados a partir da necessidade de dizer algo de forma direta a uma determinada comunidade.  A despreocupação com a escritura textual se dá pela transitoriedade desses textos, que são mutáveis com o passar dos anos.

Certamente a economia na escrita dos autores aqui citados se dá, devido ao fato de não necessitarem de rubricas ou detalhes minuciosos no texto, visto que são eles mesmos que dirigem as montagens teatrais. As raras possibilidades de publicação desses textos distanciam o foco do dramaturgo para a produção literária, concentrando sempre nas montagens desses textos.

Os aspectos citados fazem com que a forma escrita torne-se para seus autores algo com valor secundário ao seu relato oral. Quando falam dos seus textos preferem contar e até dramatizar as falas dos personagens do que fornecer o texto escrito. Sentem-se inseguros com aquilo que escreveram. Ficam claras as dificuldades de transposição do oral para o escrito desses escritores, a exemplo de Carlos Carneiro, ao explicar as carências do seu texto, diz que para entender é preciso ver a montagem e não ler o texto.

 No momento em que os entrevistados, nos apresentam suas produções textuais, seja como anotações escritas, seja em forma de relato oral; observamos que na sua maioria, essas produções são compreendidas por eles, mais como roteiro de montagem do que como texto dramático escrito, não por que não o sejam, mas sim pela perda dos elementos da oralidade que a escrita produz.

Outro aspecto interessante de se observar é a estrutura linear e aristotélica dos textos, apesar dos autores nunca terem lido a poética de Aristóteles. As montagens se apresentam com início, meio e fim, obedecendo a uma ordem cronológica, algumas trilhando uma verossimilhança que o aproxima da vida real, em outras, a presença das três unidades: a ação de uma peça envolve apenas  um conflito; no tempo de um dia e em um mesmo lugar.[28] e em outras quebrando todas as estruturas convencionais, ousando e burilando   as possibilidades cênicas que um artista pode se permitir.

O autor do teatro amador, guarda informações que seriam elos, entre as ações descritas no texto (oral ou escrito), que poderiam ser vistas como lacunas, se  descartássemos  a oralidade desses autores. Todo o grupo colabora com esta construção textual, pois o autor divide seu processo de construção com o elenco, que opina e discute o desencadear das ações, inclusive sobre o perfil dos personagens como se fosse na vida real.

 A oralidade está muito mais presente no processo de construção dos textos de teatro amador do que a escrita. Existe uma memória destes textos que é assegurada pelo registro das montagens dos espetáculos através das fotos, material de propaganda, filmagens e por isso os dramaturgos não se dedicam a escritura na sua forma convencional da dramaturgia, até porque independe da escrita, pois como afirma Amadou Hampaté Bâ a tradição oral é “Ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência da natureza, iniciação de ofício, história, divertimento e recreação, e cada minúcia sempre pode ajudar a remontar à Unidade primordial”.[29]

Zumtror nos fornece elementos significativos quando aborda as questões sobre a  poesia oral. Se a poesia consegue ser transmitida de forma oral, então o teatro amador extrapola essa possibilidade, devido a sua articulação com uma platéia. Porém, é fato a dificuldade desse reconhecimento da oralidade enquanto si mesma, principalmente por:

“ Razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com uma escrita donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a validade do que não o é.”[30]

O teatro amador busca a valorização da palavra falada e isso está diretamente ligado a memória e a oralidade. Nas falas de seus personagens identificamos o real, não só refletindo a verossimilhança exigida por Aristóteles, mas o real relacionado a um local de vida, que pulsa, representado pela forma natural de “dizer” algo para alguém: “ a enunciação da palavra ganha em si mesma valor de ato simbólico: graças a voz ela é exibição de dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro”[31] Assim acontece com os textos do teatro amador.

Não podemos, no entanto, falar de tradição quando se fala na organização e modo de produção dos grupos da Rede. Eles se misturam de forma híbrida[32], numa relação de causa e efeito, tanto nas trocas de experiências entre pessoas, entre os grupos, entre os espetáculos enquanto platéia. Assim, também se fundem de forma ideológica no exercício de cidadania em busca da transformação social no local onde vivem. Portanto não há uma forma, um jeito de fazer teatro assegurado por uma tradição de se fazer teatro. Há sim, uma necessidade de mudança social , há também o artista e por fim há o teatro como expressão que combinados se transformam em uma rede.

Nenhum dos três dramaturgos, ao elaborarem os textos citados, leu Boal com seu teatro do Oprimido ou Brecht com o teatro político, essa interferência ou influencia não foi identificada como base estética para os temas das peças ou a forma do fazer teatral. No entanto, a todo instante que lemos os textos ou assistimos as produções desses autores, identificamos uma necessidade de discutir a vida real através do teatro. Uma necessidade de mudar o estado das coisas. Um sentimento de luta contra a desigualdade, que faz com que as dificuldades de fazer teatro sejam superadas, a partir da identificação desta arte, como instrumento de luta e de conquista de direitos.

Pudemos perceber, que a necessidade da escrita destes elementos textuais, que se resolvem muito bem na forma oral; pois o teatro assim permite; representa a consciência latente desses agentes de teatro de registrar estes acontecimentos, mais como arquivos do que como literatura. Percebe-se que existe um desejo de enveredar pelo campo de publicações literárias, mas não se sentem credenciados à escrita de uma dramaturgia convencional, devido à baixa auto-estima desenvolvida e respaldada pela falta de oportunidades igualitárias, a falta de acesso a informação e formação necessárias para tal empreendedorismo.

 A escola pública brasileira não oferece possibilidades para desenvolver conhecimento, sobre as variadas modalidades da arte.  O teatro se sobressai dentro da escola, porque é usado como estrutura metodológica de apresentações de trabalhos no processo de avaliação dos alunos[33]. A maioria dos agentes de teatro, entrevistados nesta pesquisa afirmou que começaram a fazer teatro na escola. Podemos identificar nas três edições do FORTE[34] realizadas pela RMTA que a maioria desses agentes, retorna como professores de teatro para outros estabelecimentos de ensino e então, neste caso, o teatro passa a ser visto como arte, pois priorizam as montagens e circulação de espetáculos, visto que antes de serem professores são atores/ diretores em exercício.

 O acervo das Bibliotecas públicas não inclui livros sobre teatro ou textos dramáticos, dificultando o acesso dos escritores a publicações que pudessem orientar uma construção textual dita erudita:

“Os trabalhos que o Grupo Culturart, o qual eu sou membro, e eu executamos foram puramente empíricos, a discussão teórica raramente esteve presente nas nossas atividades, todavia graças a esta oficina realizada pela rede pude perceber que Teoria e Prática devem esta lado a lado para que o nosso processo de construção e conseqüentemente o resultado possam alcançar o seu ponto ótimo”.[35]

O acesso aos textos de autores como Shakespeare torna-se possível somente agora com o advento da internet, mas que ainda é uma grande ilusão quando se trata de igualdade de acesso. Muitos dos redeiros de teatro só tem acesso a internet paga, fator que ainda exclui parte dos brasileiros da inclusão digital.

Os textos dos dramaturgos brasileiros são editados em publicações caríssimas. Autores como Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, Plínio Marques, Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, não são encontrados nas estantes das bibliotecas do interior do Estado da  Bahia, segundo o relato dos próprios redeiros.

 Certamente não afirmo aqui, que esses agentes de teatro, nunca tiveram acesso às obras de Shakespeare ou de outros dramaturgos, isso se deu através do cinema e adaptações da televisão. Estas mídias são aliadas da propagação tanto da literatura de um modo geral, quanto especificamente da dramaturgia, pois  possibilita que obras clássicas cheguem mais rápido aos seus receptores.. Exemplo disso é o conhecimento das obras de Ariano Suassuna, entre a maioria dos redeiros de teatro, sem nunca as terem lido seus textos. Certamente essas produções televisivas influenciam diretamente na forma de produção dos espetáculos dos grupos da rede.

Fatores como os citados neste texto, influenciam para que dramaturgos e encenadores não se dediquem a pesquisas que fundamentariam o conhecimento para as construções textuais escritas. Desta forma, nos deparamos com um questionamento básico sobre quando falamos da literatura oral e escrita. Seriam estes textos enquadrados numa literatura oral? Existe a literatura oral reconhecida que ainda não foi escrita? Como se dá este reconhecimento do oral sem relacionar ou condicionar a forma escrita? E se escrito, estes textos seriam reconhecidos como Literatura?

Estes questionamentos aparecem quando se percebe um debate sobre o oral, que para ser reconhecido ou conhecido precisa ser escrito. As formas estruturais da escrita, por mais representativas que possam parecer, na oralidade, não conseguem obter reconhecimento de expressão cultural e isso fica muito claro, quando falamos de teatro e do texto de teatro. Compreendemos que o oral está diretamente relacionado à voz e a linguagem e isso não possui qualquer relação com o escrito, nem está atrelado hierarquicamente a uma estrutura de amadurecimento ou uma suposta “evolução” para a escrita.

 Entendemos que as montagens teatrais, na sua maioria, são construídas a partir dos textos, elaboradas a partir de uma estrutura escrita e literária. No entanto, no campo do teatro amador, a oralidade é a forma que dá base a montagem, seguindo uma sequência de idéia, do pensamento elaborado, da oralidade dos griôs e membros dos grupos, da montagem, da apresentação do espetáculo e só depois e nem sempre, se dá uma estrutura textual escrita.

 A maioria dos dramaturgos entrevistados afirmou “arrumar” o texto, alguns anos depois de tê-los montado, mostrando com isso, a irrelevância para eles, no momento da montagem, desta transformação do oral para o escrito.

Acreditamos que este texto que por ora concluímos,  seria um bom pretextos para que  outras pesquisas, ocorram tanto para reconhecer o oral enquanto forma em si mesmo, quanto para repensar as restrições que a escrita causa na palavra falada. A maioria dos dramaturgos entrevistados afirmou “arrumar” o texto, alguns anos depois de tê-los montado, mostrando com isso, a irrelevância para eles, no momento da montagem, desta transformação do oral para o escrito.

 

 



[1] Cátia Cristina Santana Garcez é mestranda do Programa em Crítica Cultural, da Universidade do Estado da Bahia, sob a orientação da Profa. Carla Patrícia Santana.

 

[2] Enciclopédia delta Larousse, 2 ed. vol.9, Rio de janeiro: Delta S.A, 1968, pag.4706

[3] MAGALDI, Sábato; Panorama do teatro brasileiro, 4ed. São Paulo: Global, 1999

[4] ORTIZ, Renato; Cultura Brasileira e Identidade Nacional, 9 reinpr. da 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006

[5] FOUCAULT, M. Nietzsche, genealogia e história. Microfísica do poder. Rio de janeiro:Graal,2007. Cap.V

[6] A RMTA-Ba é uma rede de grupos de teatro que possui mais de cem grupos filiados e em articulação, seu objetivo é o fortalecimento do teatro no interior do estado

[7] O GOTS foi o grupo de teatro que fundou a Rede de Movimento de Teatro Amador da Bahia no ano de 2004, reunindo grupos da região metropolitana e recôncavo Baiano no município de São Sebastião do Passé.

[8] A pesquisa incluiu grupos existentes antes da instalação da Rede de teatro e que, com a adesão à rede, passaram por mudanças estéticas das produções teatrais.

[9] SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano; da cultura das mídias à cibercultura, São Paulo: Edusp, 2007, p. 55

[10] Publicações do Teatro Vila Velha e da Fundação Cultural do Estado da Bahia mostram o interior como um foco para formação em teatro. Poucos registros são encontrados da existência de grupos teatrais no interior baiano.

[11] www.caeba.org.br. Acesso em 17de fev 2011

[12] www.ciadelapraca.blogspot.com

[13] www.fitbahia.com.br. Acesso em: 18 de fev.2011 

[15] O grupo Resistência de teatro existe desde 1997 no município de Camaçari.

[16] Entrevista com Tony de Souza, diretor cênico do grupo Resistência, realizada em São Sebastião do Passe em 05 de agot. 2010.

[17] Reinaldo Gomes é ator, diretor da Companhia Cia de Risos, arte educador e gestor público de cultura de São Felipe e cidades vizinhas.

[18] Entrevista com Reinaldo Gomes, realizada no município de Mata de São João em 25 de out. 2010, durante o VII Fórum Intermunicipal de teatro Amador.

 

[19] https://www.cidadedosaber.org.br. Acesso em 12 de fev.2011.

[20]Entrevista concedida a Michele Oliveira e publicada no site: https://www.nossametropole.com.br. Acesso em 12 de Marc. 2011

[22] MARTIM-ARBERO, Jesus; Dos meios às mediações: comunicação cultura e hegemonia; in: Do Folclore ao Popular. 2 ed. Rio de janeiro: UFRJ, 2003.

[23]  Trecho do texto Os bregas e chiques de Carlos Carneiro.

[24] Entrevista  concedida por Iacson de Jesus em o6 de dez.2010

[25] Estes  e outros textos estão sendo catalogados e alguns transcritos em antologia como resultado desta pesquisa.

[26] Entrevista  concedida por  Jorge Crispiniano de Almeida  em 06 de dez.2010

[27] POUND, Ezra.  ABC da Literatura,  11ª ed. Apresentação de Augusto de Campos. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes.  São Paulo: Cultrix, 2006.

[28] Segundo o dicionário de teatro para cumprir a lei das três unidades, a ação de uma peça não poderia envolver mais de um conflito; no tempo de um dia e em um mesmo lugar.

[29] BÂ, Hampaté A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História Gertal da África,I;metodologia e pré-história da África.São Paulo:UNESCO,1982.

[30] ZUMTHOR, Paul. Precisando.IN: Introdução a poesia oral. São Paulo: Hucitec,1997 p.9

[31] Idem 1997.p.13.

[32] CANCLINE, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: estratégias para entrar e sair as modernidade. São Paulo: EDUSP,1997.

[33] Esta afirmação é possível com base na nossa experiência como professora de teatro nas Escolas públicas dos municípios de São Sebastião do Passé e Madre de Deus.

[34]  Formação em Teatro realizada pela Rede com o propósito de capacitar os agentes do interior do estado em metodologia do ensino de teatro, como estratégia de formação de platéia.

[35] Relatório apresentado pelo agente de teatro Daniel Muniz Rocha de Campo Formoso para a coordenação do FORTE II.

 

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