ARTE, CULTURA E AUTOCONHECIMENTO PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA
AJUSTE DE CONTAS
29/03/2016 14:04
Por Cátia Garcez
Ela estava sentada na cadeira ao lado de uma urna funerária e o cheiro de flores e velas se misturavam. Observava as pessoas em sua volta como quem estuda um livro que há muito queria ler! As pessoas entravam silenciosamente, murmurando um tímido cumprimento aos presentes e imediatamente se dirigiam ao caixão cor de verniz... Simulavam uma expressão de pesar, fingiam uma oração breve e com o sinal da cruz encostavam-se à parede alva da sala, após constatar não haver mais acentos no ambiente.
Outras mais próximas da família da defunta deixavam escorrer filetes de lágrimas, limpas com rapidez com as costas das próprias mãos nervosas como desejo de resistir à fraqueza de sofrer em frente às testemunhas.
Ela era Samara, sobrinha de dez anos, que apesar de gostar muito da tia morta, estreava pela primeira vez aquele cenário fúnebre. Estava encantada com as energias e burburinhos que pairava naquele velório. De dentro dos quartos ouviam-se burburinhos de parentes que vieram de longe e já se acomodavam para dormir... Da cozinha exalava o cheiro forte do café preto e em um canto da sala, ouviam-se soluços interrompidos da mãe da falecida, também sua avó... Estava atenta a tudo, pois haveria de cumprir a promessa que fizera à tia enquanto moribunda.
Escondido em suas mãos de criança, enrolado em forma de canudo, estava à lista e era de fundamental importância que não se separasse daquele pedaço de papel. Recortado em forma de um grande pergaminho, o papel verde usado antes para enrolar pão tinha sido adaptado para aquela necessidade.Já passavam das onze horas e o sono insistia em dar-lhe golpes no pescoço. Vez por outra aparecia um parente aconselhando que fosse deitar-se, o que recusava de imediato.
Na tentativa de espantar o sono, dirigiu-se a cozinha e enchendo uma caneca de café já doce, deitou alguns biscoitos “poca zoio” afogando-os na caneca. Abriu a gaveta de talheres com barulho de gaveta velha e viu uma de suar tias ralhar pedindo silêncio e com a colher, voltou para a sala. Percebeu alguns olhares de estranheza, mas logo a deixaram em paz, dando conta de sua criancice. Ali dividia a atenção com a morta, os vivos e sua caneca de biscoito com café.
Exatamente a meia noite, como tinha exigido a falecida, na certeza de que sua mãe havia ido se recolher, a menina subiu num tamborete que ficava próximo da janela chamando a atenção das pessoas presentes.
-Boa noite gente! (Procurou dar um tom de importância a sua voz e continuou) Eu tenho uma lista aqui na minha mão que quero apresentar para vocês (tragicamente deixando o protótipo de pergaminho desenrolar até os seus pés). Foi minha tia que pediu que quando ela morresse eu fizesse uma chamada em seu velório.
Foi velha se benzendo, jovem rindo e quando um homem já caminhava em sua direção, pronto para tirá-la do seu pedestal ela continuou:
- Seu Nicolau, o senhor vai ser o primeiro a sair... Foi minha tia que pediu... Falou que o senhor é falso feito à peste e que a vida toda falou mal dela e que tinha certeza que com seu cinismo seria o primeiro a vim fingir estar triste com a morte dela.
O homem ficou pálido, tentou argumentar e diante dos olhares coniventes dos presentes pegou o chapéu e foi-se embora. Sua tia Conceição, sentindo-se substituta de sua mãe, na ausência dela, exigiu que a menina se comportasse, mas ela tinha o aval do personagem principal daquela história: A morta. E continuou:
- A lista dos desafetos da minha tia é grande. Então para evitar a má sorte, eu peço que aqueles que foram falsos, maledicentes e que prejudicaram minha tia de alguma forma durante sua vida se retirem! Pois este é um momento de despedida daqueles que a amava.
Infelizmente o mundo é dos falsos. Como era de se esperar em menos de 5 minutos a sala estava vazia, com a presença apenas de duas amigas de minha tia, a menina e sua avó.
- Pronto tia, agora pode descansar em paz!
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