ARTE, CULTURA E AUTOCONHECIMENTO PARA MELHOR QUALIDADE DE VIDA


O PRESENTE DE ALETEIA

Dia das crianças é um dia muito incômodo para os adultos, mesmo 
 
para aqueles que não têm filhos, pois sempre tem alguma por perto 
 
com aquele olhar de pidão como quem diz: - hoje é meu dia! Cadê meu 
 
presente? Então ficamos desconcertados e a cada ano acumulamos mais 
 
um nome na lista até que eles cresçam e nos deixe, a nós adultos, em 
 
paz. Ufa! O problema, no entanto não acaba aí, temos que nos preocupar
 
com o orçamento escasso, no gosto dos pestinhas e principalmente na 
 
qualidade dos presentes. Esses três critérios vêem mais para complicar
 
do que solucionar os problemas. Presente barato, do agrado das crianças
 
e de qualidade é quase impossível diante de uma mídia que a todo o 
 
momento anuncia as habilidades das Reloquites e Barbes . Mas o que 
 
fazer se esta tradição nos afeiçoou tanto também na infância? E é aqui 
 
que vamos parar um pouco a nossa frustração de não poder presentear
 
todas as crianças do bairro e falar sobre o presente de Aleteia.
 
Antes, porém falarei de um tio avó que a menina ganhou antes 
 
mesmo de ter nascido. Seu nome é Wilton Valença, figura já bem prá lá 
 
da terceira idade, com cabelos e barbas brancas e ao contrário do que 
 
esta informação nos remete não se parece em nada com papai Noel, pois 
 
é alto, esbelto e elegante. Um grande e pré-histórico cavalheiro de fazer
 
inveja aos três Mosqueteiros, pois não senta enquanto tiver uma senhora
 
ou senhorita em pé, e não mede esforços para beijar as mãos das 
 
mulheres ao cumprimentá-las. Grande ganho para a pequena Aleteia que 
 
desde os quatro anos já recebe rosas em casa, ao mando do distinto tio 
 
avó. Neste dia doze de outubro, o pacote chegou através da tia que veio 
 
da capital homenagear os sobrinhos; desta amiga e irmã, falarei em outra
 
ocasião. Era uma sacola plástica com revistas para colorir, uma bíblia para 
 
crianças e dois DVDs do sítio do pica-pau amarelo. Certamente Valença 
 
ignorou o primeiro critério e não economizou suas economias, pois livros
 
ainda são artigos de luxo da nossa sociedade com tão poucos leitores.
 
Voltemos então ao presente, a pequena Aleteia 
 
estabeleceu uma regra para seus pais, cada dia antes de dormir lerão para 
 
ela uma das centenas histórias da bíblia presenteada por “Vovó Íto”. Já 
 
vencemos Golias, com a ajuda do ainda futuro rei Davi; tentamos avisar a 
 
Sansão das artimanhas de Dalila e nos transtornamos com a submissão 
 
de Ester ao aceitar viver no harém de Xerxes. Por enquanto a ficção da 
 
cinderela e das fadas não mais interessam a menina. No entanto, para 
 
compensar as desgraças e guerras das histórias do velho testamento, 
 
Aleteia passa o turno oposto à escola se deliciando com o imaginário de 
 
Monteiro lobato através da historias da boneca de pano, Emília e das 
 
peraltices do moleque saci . Enquanto a nos, ficamos entre um trabalho e 
 
outro, entre as várias saídas e entradas em casa usurpando os momentos 
 
estéticos de contato com aquela obra de arte adaptadas pela rede Globo. 
 
Foi, então que nos veio a vontade de escrever, ao ver na tela, a danada da 
 
boneca explicando ao Visconde de Sabugosa o que era a vida; “Um pisca-
pista que um dia fecha os olhos e deixa de piscar” e o comentário de 
 
Aleteia falando com os seus botões: “ Gostei! ”.

Essência das coisas

Numa seqüência ininterrupta
 
de ações, relacionadas à preservação da
 
espécie, os seres humanos, estão vivendo um 
 
verdadeiro estado de torpor e decadência no 
 
que diz respeito à essência da vida. Homens 
 
e mulheres passam a maior parte do tempo 
 
de suas vidas correndo atras de dinheiro, 
 
estabilidade financeira, conforto, carro 
 
zero, acreditando ser esta a melhor forma 
 
de garantir a felicidade. Não percebem, 
 
que estão abrindo mão de momentos e 
 
experiências que o dinheiro não pode 
 
comprar, pensando que um dia terão tempo 
 
para as coisas simples, a exemplo olhar a lua.
 
Na maioria das vezes, este tão 
 
esperado tempo para ser feliz nunca chega, 
 
pois as criaturas humanas esquecem o 
 
incontestável movimento da natureza: A 
 
transitoriedade das coisas. É fato que não 
 
somos eternos, e neste momento passo 
 
a me incluir neste discurso. Diante desta 
 
transitoriedade e das incertezas do futuro, 
 
o que nos aguarda na próxima dimensão; se 
 
é que entendemos o que isto significa; nos 
 
impõe uma eterna sensação de adiamento. 
 
Somos como pássaros na gaiola, esperando 
 
que um dia a porta se abra... 
 
Na verdade, de tanto adiarmos 
 
a felicidade, ficamos indiferentes a tudo: 
 
ao toque, ao sol, ao verde, à música, aos 
 
suspiros, aos beijos e abraços fraternais, ao 
 
olhar, ao próximo. Parece piegas, no entanto, 
 
a rotina massacra impiedosamente a nossa 
 
sensibilidade e não enxergamos mais, nem 
 
ao outro, nem a nós mesmos. E qual de nós 
 
viu uma borboleta nos últimos trinta dias? 
 
Ou o sol nascer, ou a lua cheia, ou até o arco-
 
íres? Estes fenômenos continuam existindo! 
 
Somos nos que não vemos.

CARURU DE FOLHA

Tia Iaiá era uma figura pequena, com rosto e olhos miúdos. Era uma boa 
 
ouvinte, ria fácil e possuía uma dignidade de rainha. Suas roupas eram sempre 
 
impecavelmente bem lavadas e passadas, certamente engomadas para ter aquele 
 
aspectos de ter sido tirada do guarda-roupa, mesmo estando vestida à horas. Assim 
 
ela aparecia lá em casa, acompanhada de Terezinha, prima em terceiro grau, eu creio. 
 
Sempre aos sábados à tarde ou domingo depois da missa.Com bastante freqüência, 
 
no tempo que vovó morou lá em casa, para se recuperar de uma amputação da perna. 
 
Depois com menos freqüência, ela aparecia, nos abraçava com as mãos pequenas e 
 
maltratadas pelo trabalho pesado.
 
Falava pouco, nunca se queixava, mesmo quando colocou uma fonte de safena... Era 
 
difícil saber se estava triste pois mesmo em momentos de perdas de entes queridos, 
 
quando o nosso olhar de criança encontrava os dela era sempre um sorriso calmo e 
 
sereno que víamos, como se tivesse a convicção da efemeridade da vida. 
 
Vez por outra íamos visitá-la em sua casinha no bairro do Alegre. Residência
 
simplória com uma porta e duas janelas. Uma das janelas era usada como balcão 
 
para atender aos fregueses, que compravam em sua quitanda. Neste pequeno quarto 
 
se vendia tudo em varejo, do fósforo a cachaça. Lembro que ela insistia para encher 
 
as nossas mãos de amendoim coberto quando sinalizávamos a despedida. Lembrança
 
gostosa de tia Iaiá! 
 
No entanto, o que mais ficou guardado em nossa memória foi o caruru de folha 
 
que ela oferecia no dia 01 de novembro, dia de todos os Santos. Às dezoito e trinta 
 
saíamos de casa, já combinados de como trapacear quando lá chegássemos: É que o 
 
caruru de quiabo tinha pra todo mundo, mas o caruru de folha era privilégio dos amigos
 
e parentes, com uma pequena particularidade, o prato que ela servia o caruru era um 
 
prato de doce raso e pequeno, que não saciava o nosso desejo de um ano de espera. Era 
 
proibido repetir e se insistíssemos ela olhava satisfeita e desconversava com o mesmo 
 
sorriso de sempre. Então, a cada ano fazíamos uma trapalhada na hora de devolver o 
 
prato vazio, numa tentativa fracassada de dizer depois, que não tínhamos sido servidas. 
 
Na próxima edição passarei aos estimados leitores a receita do caruru de folha da 
 
saudosa tia Iaiá.

“Agente não quer só comida...”

A lenda que relata o feito da ave fênix que ressurge das cinzas seria poético, se o que 
 
me reporta o pensamento não fosse algo tão visceral quanto a política sebastianense. 
 
Impressiona-me a grande quantidade de munícipes que se apresentam candidatos a cargos 
 
políticos como se fossem múmias recém saídas do sarcófago, fedidas, amarfanhadas em 
 
teias de aranhas e certamente conservadas até hoje pelo formol da ganância e falta de 
 
escrúpulo. A fênix da qual me refiro, são aqueles ditos articuladores políticos e os pseudos 
 
locutores que somem e depois reaparecem em nossa cidade, no período eleitoral para 
 
barganhar algumas moedas que garantam mais alguns anos das suas miseráveis vidas. E 
 
por falar em barganha, é isto que alguns candidatos estão tentando fazer com os artistas e 
 
agentes da cultura. Oferecem de tudo para desarticularem os grupos de dança, de teatro, os 
 
músicos, artistas plásticos, no entanto, é importante ratificar que a cultura não é um gueto 
 
e que não há chefes ou proprietários. Nós sim, somos aves fênix, que durante anos fomos 
 
censurados, perseguidos e condenados ao anonimato pois nesta terra só havia uma mísera 
 
coordenação de eventos que acreditava que cultura se resumia numa micareta. Nem nas 
 
escolas podíamos mostrar a nossa arte: Era proibido!
 
Hoje o movimento cultural é tão forte que os candidatos a prefeito ficam nos catando 
 
pelas ruas... tem até enfermeiro que ameaçou dar fim na cultura. É incontestável que foi na 
 
atual administração, que surgiram as melhores oportunidades para os artistas da terra. A 
 
Biblioteca que era um depósito de livros rasgados, sem a menor organização possui hoje, 
 
mais de 30 mil exemplares para pesquisa, consulta e empréstimo, assinatura de jornais e 
 
revistas que chegam diariamente para dar acesso à informação atualizada. Foram criados: 
 
Arquivo Público, Memorial de Padre Brito, Casa da Cultura, Anfiteatro em Jacuipe, 
 
valorização de Lindo- amor, samba de roda, reinado, coral infantil, de jovens, coral da 
 
terceira idade. Lançamentos de livros foram quatro: sobre Maracangalha, do Sr Valdevino
 
Paiva; sobre São Sebastião do passé, de Dona Jardilina; de poesias, dos poetas da terra e o 
 
último, de peças teatrais escritas por mim, ao longo destes vinte anos de teatro aqui nesta
 
terra.
 
 Contra fatos não há argumento. Como dizem meus alunos ao se depararem com as 
 
dificuldades da vida: “Ta Brabo!” Seria interessante ver estas múmias, sacudirem a poeira
 
e justificarem o desrespeito com a nossa história quando criaram uma torre nova para a 
 
igreja, quando destruíram a arquitetura da praça 12 de outubro que tinha o formato de um 
 
braço de uma guitarra, quando destruíram a Concha acústica e a fonte luminosa que “tocava
 
a música conforme a cor da água” e era ligada pelo saudoso Zequinha da Galinha, nas 
 
tardes de domingo. Ta Brabo, fazer o povo esquecer...Múmias, voltem para seus túmulos.
 
Oportunistas, voltem para suas cavernas... Ninguém mais, calará os artistas desta terra.

Um Gari chamado Jesus

 
 
Ao assistirmos o nascimento de um bebe, desejamos 
 
no fundo dos nossos corações que aquele pequenino ser seja 
 
infinitamente feliz. Associando evidentemente, esta felicidade 
 
à ascensão social conquistada através de um bom emprego, de 
 
preferência com cargo de chefia e com um salário bem alto, como 
 
é comum no pensamento ocidental e principalmente na concepção 
 
capitalista, que vincula a felicidade aos bens que possamos 
 
conquistar. Foi em meio a esses pensamentos que Jesus, filho de 
 
família pobre e humilde, pois uma coisa não tem nada a ver com a 
 
outra, nasceu e se criou. Estudou até a sexta série e parou, por que 
 
obviamente precisava ajudar nas despesas de casa.
 
 Com um carro de mão, Jesus desfilava pelas ruas da cidade, 
 
levando compras de senhoras alheias à sua vida e às delas próprias. 
 
Não reclamava, ficava feliz em voltar para casa com os trocados 
 
que lhe garantia o pão de cada dia; e que entenda-se aqui, o pão 
 
de cada dia é uma metáfora filosófica, comparada a alimentação 
 
diária de Jesus. Aos 17 anos Jesus voltou à escola, concluiu o ensino 
 
fundamental e sentiu orgulho de si mesmo. Aos 20 anos Jesus 
 
já havia passado por borracharias, balcões de bares e açougues, 
 
prateleiras de mercados, padarias, carpintarias, tornando-se um 
 
multe profissional de larga experiência no mercado de trabalho.
 
 O motivo que fazia Jesus mudar tanto de emprego, era que 
 
seus empregadores eram sonegadores de impostos, não pagavam 
 
salário mínimo e não assinavam carteira de trabalho, este era um 
 
sonho que Jesus ainda não poderá realizar: trabalhar de carteira 
 
assinada. Então um dia, Jesus conseguiu um emprego de gari, e isso 
 
foi muito bom, pois ele recebia mais que o “mínimo” por causa dos 
 
riscos que corria por trabalhar com o lixo. Ruim mesmo, foi neste 
 
momento Jesus se perceber como gente, ele nunca tinha pensado 
 
nisto antes. Enquanto varria as ruas das cidades e varria com tal 
 
gama de dedicação que chamava a atenção daqueles que passavam, 
 
Jesus pensava em coisa estranhas. Os papeis de bombons, chicletes 
 
e pipocas, representavam as crianças mal orientadas pelos pais e 
 
professores; os papeis, papelões, garrafas e latas representavam a 
 
ignorância dos adultos, que ainda não haviam aprendido a reciclar o 
 
lixo. Para Jesus tudo aquilo era tão estranho: passar horas limpando 
 
uma rua que no dia anterior ele havia limpado com tanto zelo. 
 
olhavam. Jesus começara a achar que a sua presença os incomodava, 
 
afinal, estar ali diariamente, era a prova da falta de educação 
 
daqueles moradores. Enquanto varria, Jesus refletia as mesmas 
 
coisas que os grandes filósofos refletiram. Porque tanta indiferença?
 
Era a pergunta que Jesus se fazia. Percebera enquanto perseguia 
 
uma prova escolar em folha de ofício que o vento insistia em 
 
brincar, que a vida é bela e que os homens e as mulheres são feios e 
 
feias. Percebera que jogar lixo no chão era uma questão de caráter, 
 
de personalidade; mau caráter, má personalidade. Jesus sabia tudo, 
 
mas não ficou triste, afinal enquanto o papel voava empurrado pelo 
 
vento, pode admirar as luzes natalinas que deixavam a cidade tão 
 
mágica. Talvez esta magia do natal um dia, pudesse transformar os 
 
homens, tornando-os mais solidários e sobre tudo mais 
 
comprometidos com Jesus. 
 
Estranho também era a forma como as pessoas o

MOÇAS, RAPARIGAS E FICANTES

Na última trezena de Santo Antonio, iam sempre as irmãs, meninas –moças
bonitas com fitas que amarravam os cabelos lisos, num penteado repetitivo do período 
 
junino nordestino. Os moços já de olho nos cambitos da mais velha e no assanhamento 
 
da mais nova. As do meio não, já eram raparigas de homem casado. Estas, ninguém 
 
chamava pra dançar, que era mala na certa. Mala, para quem não sabe, era recusar um 
 
convite de uma dança numa festa. A moça que recusava não podia dançar com mais 
 
ninguém se o solícito moço se sentisse ofendido com a recusa do pedido. Rapariga, era 
 
o termo usado para classificar as amantes de homens comprometidos ou as mulheres 
 
que moravam com um homem sem a oficialização de uma cerimônia religiosa ou civil 
 
de casamento. Assim a rapariga quando paria, seu filho era Filho da P. ou bastardo. O 
 
primeiro no popular e o segundo no Civil.
 
tanta devoção das moças de antigamente. Quem era doida de não querer arranjar um 
 
casamento e ficar pra titia, ou ficar no barricão? Ninguém! E assim mulheres brancas 
 
e negras tinham um único sonho: casar! Mesmo que tivesse que se submeter a dividir 
 
seus maridos com várias raparigas, coisa comum naquela época.
 
seria novena. Percebi que Santo Antonio continua carregando menino Jesus nos 
 
braços, assim como São João continua com o carneirinho do lado. Notei também 
 
que as trezenas são mais de tradição do que de devoção... será? Ninguém pediu pra 
 
casar! Dizem até que Santo Antonio não é santo casamenteiro. Dizem as línguas que 
 
quem casa é São José. No último dia da trezena, fiquei emocionada com a emoção das 
 
devotas, cantando a música de adeus... adeus António... todas acenando com as mãos 
 
verdadeiramente tristes por estarem encerrando treze dias de oração, de encontro, de 
 
canto e ladainha. Todas cantavam assumindo no próximo ano, continuar os festejos. 
 
Tinha bolo e tinha licor. Mas homem tinha pouco... será que os homens não gostam de 
 
Santo Antonio? Perguntei a um deles, que me respondeu que, se um dia descobrir que o 
 
casamento dele teve o dedo de Santo Antonio, vai deixar o pobre do santo (da imagem ) 
 
que sua mulher é devota, um ano de cabeça pra baixo e ainda vai roubar o menino Jesus 
 
pra que o santo sinta o peso da sua ira... ainda bem que consegui convencê-lo que Santo 
 
Antonio não casa ninguém. Mas não sei se consegui livrar a cara de são José.
 
 Hoje as moças, termo que antes significava virgindade e hoje pouca idade, 
 
não sonham com casamento, ou sonham? Com essa história de ficar, que significa 
 
um namoro rápido e sem compromisso, creio ficar difícil casar um ficante com uma 
 
ficante. Na hera do namoro pela internet, será difícil olharem a lua juntos, dá as mãos 
 
enquanto disfarçam para que pareça um gesto casual, roubar um beijo na hora do 
 
intervalo da aula... E tantas pequenas coisas que agente costumava dizer: -isso vai dar 
 
em casamento. Bem, quem perde é Santo Antonio que cada dia mais, tem suas trezenas 
 
acompanhadas pela galera da terceira e quarta idade. Desse jeito, não tem tradição que 
 
resista!

TODO HOMEM É LUCIANO

E no sétimo dia Deus fez o homem...
 
Tequinha e Luciano foram àquela praia passar o reveillon em casa de um tio... 
 
Tudo teria sido maravilhoso se Luciano não tivesse bebido demais, aliás, como
 
Tequinha prevera desde o inicio da viagem. Ele humilhou a garota na frente de várias 
 
pessoas e no momento culminante da briga deferiu-lhe um forte tapa no rosto. Bem,
 
Tequinha acreditou ser o fim do seu longo namoro.
 
No outro dia, Luciano muito arrependido, pediu uma oportunidade para
 
conversarem e ela deu...
 
Saíram em busca de uma praia mais reservada para “lavarem a roupa suja” e
 
num local que parecia calmo para Tequinha e convenientemente deserto para Luciano,
 
entraram na água com a intenção de dialogarem enquanto banhavam-se.
 
Na cabeça de Luciano só havia um pensamento: “Porra, Tequinha agora vai 
 
encher o meu saco” enquanto Tequinha pensava: “Ele pensa que vai me dobrar. Para 
 
mim, acabou!”.
 
Houve um enorme silêncio, até que ela explodiu:
 
- Você é um sacana cara. Me bater daquele jeito... Saiba que foi a primeira e a 
 
ultima vez!
 
- Que é isso Tequinha? Eu te amo cara...
 
 “Cara” era um substantivo misturado com gíria, para ser usado em momentos 
 
difíceis como aquele. Só então, Luciano percebeu que estava prestes a perder sua 
 
namorada de três anos.
 
- Que é isso Tequinha? Nós vamos casar e seremos felizes...
 
- Você não vai mudar nunca... Comporta-se como um completo idiota.
 
 Tequinha desabafa, falando alto, gesticulando com o dedo em haste na direção 
 
de Luciano, e ele escutava, aproveitando o tempo para criar sua estratégia de defesa.
 
- Porra Tequimha, eu já pedi desculpas! Eu quero ficar numa boa cara.
 
Não adiantou tentar virar o jogo, Tequinha mais irritada ainda, voltou a 
 
sua “ladainha” de motivos de largá-lo para sempre.
 
- Cresça Luciano, você tem 30 anos e é tão infantil.
 
Não adiantava, Luciano estava perdendo a paciência. Maldita ressaca e aquela 
 
dor de cabeça não passava.
 
- Vem cá Tequinha. Eu quero ficar numa boa cara!
 
- Não me toque! Eu tenho nojo de você.
 
Até para Tequinha, isso soou como uma cena de novela mexicana. Luciano
 
resolveu usar uma nova técnica e forçou um beijo daqueles dignos de um verdadeiro 
 
dramalhão.
 
- Me larga cara...
 
Luciano não suportava mais. Pensou em agarrá-la a força e transar com ela
 
ali mesmo, mas ao olhar em volta, percebeu que a praia já não estava vazia. Algumas 
 
mulheres e crianças banhavam-se ali perto.
 
 - Fala baixo Tequinha.
 
- Ontem você não estava preocupado que as outras pessoas escutassem.
 
Era evidente que as pessoas estavam ouvindo.
 
- Eu vou embora... Para mim acabou, cara!
 
- Espera ai Tequinha...
 
Luciano sai andando desanimado, cabisbaixo, seguindo os passos de sua 
 
amada... Na areia, segura a namorado pelo braço, olha na direção do mar e como ele 
 
imaginava, o público esperava ansioso pelo desfecho da sua história. Agarrou Tequinha 
 
com força apertando-a contra o próprio corpo e disse em voz alta, não para Tequinha, 
 
mas para platéia que parecia não perder nenhum detalhe:
 
- Você vai parar com isso tá? Quando chegar na casa do meu tio, a gente vai 
 
ficar numa boa entendeu? Ou então você vai se ver comigo.
 
E sai arrastando-a pelo braço sem perceber as lágrimas que desciam a face da 
 
namorada, mas antes de sair do campo de visão daquelas pessoas, Luciano ainda ouviu 
 
os gritos:
 
- Larga ele Tequinha, larga ele!
 
Tequinha não ouviu, estava envolvida demais em seu sofrimento. Enquanto 
 
Luciano, sem olhar para trás ignorou a opinião popular, com a certeza de que Tequinha 
 
lhe pertencia.

Rezadeiras I

Durante toda a minha vida fui atormentada por problemas místicos e 
 
incompreensíveis para algumas pessoas e completamente explicáveis para outras. 
 
Lembro-me de crises que me deixavam acamada. Diagnóstico: Espinhela caída! E lá eu 
 
me debandava a procura de Dona Brasília, uma senhora alta e forte que morava numa 
 
casa humilde , no bairro do São Roque, perto do finado Chico do Porco, que na época 
 
não era finado.
 
Eu chegava e ela mandava eu sentar, conversávamos como se ela não soubesse 
 
porque eu estava ali. Depois de alguns minutos, ela dizia:
 
- É a espinhela né minha fia? É danada... quando ataca! 
 
 Então ela colocava as minhas mãos com as palmas voltadas para cima e 
 
media o meu polegar em relação ao meu indicador, balançava a cabeça dando muxoxos, 
 
demonstrando solidariedade à minha situação e começava a rezar a região do meu tórax. 
 
Ficava atenta as palavras emitidas, mas os sussurros me deixavam numa sonolência 
 
deliciosa que quando acabava eu torcia para que ela mandasse eu voltar mais duas 
 
vezes. Quando a espinhela estava muito aberta, só fechava se rezasse três vezes e ficasse 
 
de resguardo. O resguardo também eram três dias. Não podia abrir nada: nem porta, 
 
nem janela ,nem gaveta, nem armário. Fechar podia! Também não podia colocar as 
 
mãos acima da cabeça. Pentear cabelo nem pensar. Eu adorava o resguardo, pois desde 
 
pequena já possuía infinitas tarefas domésticas que eram dispensadas nestes períodos.
 
Dona Brasília, apesar de ser alta e forte era uma criatura de um semblante 
 
sereno, que transmitia confiança e muito cuidado para com quem a procurava. Com uns 
 
dez anos de idade eu ia a sua casa para rezar de olhado:
 
- Dona Brasília, mainha me mandou vim aqui pra senhora me rezar de olhado! 
 
E lá vinha ela com ar compreensivo, abandonando a bacia de roupa para me 
 
atender. A reza de olhado tinha um som de chuva que também me fazia ficar sonolenta 
 
e entre um bocejo e uma frase de oração, ela me despertava tentando colocar a conversa 
 
em dia - Em minha fia? Como vai Rosa? Nunca mais vi Rosa! E seu pai, como vai? E 
 
eu ia respondendo também bocejando, sentindo o cheiro às vezes da “corana” e às vezes 
 
da vassourinha, que era jogada fora depois da reza, acompanhada de uma “cusparada” 
 
que me deixava impressionada.
 
Depois de alguns anos aprendi a medir a espinhela com um cordão: Pega a 
 
ponta do cordão e coloca na ponta do dedo mindinho e leva até a ponta do cotovelo, 
 
depois dobra o comprimento do cordão, pega essa medida e circula o tórax. Se o 
 
comprimento do cordão der para encostar uma ponta na outra na frente do tórax, está 
 
tudo bem, se ficar afastado uma ponta da outra sem fechar a circunferência do tórax, aí 
 
então a coisa ta feia. Acredite se quiser!

Rezadeiras II

É assim... Agente não acredita, mas quando a dor vem, aí é um Deus nos 
 
Ela morava na rua do saboroso, aquele restaurante de João Bereta, já falecido 
 
e de Dona Nalva, que está bem viva graças a Deus, com um restaurante agora na rua do 
 
João Paim. Ela era Dona Lili, mãe do professor de francês Apolinário. Este morreu tem 
 
pouco tempo aquela ainda vive... Magrinha, simpática e muito séria, não dava ousadia à 
 
criança. Por isso só procurava ela pra coisa muito séria. 
 
Olhado, espinhela, procurava Dona Brasília que era boa praça,mas Dona lili 
 
era severa. Não era todo mundo que rezava e apesar de não cobrar pela reza, você tinha
 
que ter uma boa “peixada”, para conseguir as preces da danada. Sua especialidade
 
era curar “a vermelha”, nome dado a erizipele, termo que por sinal era proibido de se 
 
pronunciar na frente dela
 
.
 
Tinha lá meus 11 anos e sem mais nem menos, o tornozelo avermelhou como 
 
um tomate maduro, a coceira de enlouquecer, me obrigava a dengar a ponto de mainha 
 
mandar buscar Dona Lili. A oração eu não me lembro. Lembro sim dela me olhando 
 
com piedade nos olhos, como se eu estivesse à beira da morte... Veio em casa uma três 
 
vezes pra rezar e depois, mais umas três pra visitar. Ficou minha amiga. 
 
A sensação de um formigueiro com todas as formigas picando 
 
simultaneamente minha perna, descreve bem o sintoma da doença, que foi aliviada pela 
 
oração e pelo azeite de oliva Galo (só servia dessa marca) que Dona Lili aplicava no 
 
lugar com uma pena de galinha, pois qualquer outro instrumento usado, poderia ferir a 
 
pele sensível . Quando estava recuperada, a boa senhora me aconselhou a arranjar um 
 
cágado. Tartaruga não! Cagado de presente ...comprado não. Então meu vô Abelardo, 
 
marido de vô Chiquinha; aqueles que moravam na frente de Dona Nana e seu Flávio, no 
 
São Roque, Sabe? Deu-me de presente um lindo e pequeno cágado, para que nunca mais 
 
a doença voltasse!

ESCOLA DA VIDA

 
 
Era com alegria que esperávamos as quartas-feiras, dia da reunião do grupo 
 
JURS- Juventude Unida São Roque. Todos nós, jovens católicos que acreditavam no poder da 
 
articulação e cooperação entre pessoas como instrumento de transformação social. O Grupo 
 
tinha como objetivo a catequese de crianças e o suporte para leituras e cantos nas missas dos 
 
Jovens, de sábado á noite, realizadas sempre na Capela do São Roque. Capela linda, que se 
 
perdeu devido a indiferença e vaidade de párocos que por aqui passaram, que a revelia da 
 
história, cultura e tradição, modificaram as estrutura físicas da nossa capela. Na época do 
 
JUSR, nosso guia espiritual era o saudoso Padre Brito. Com ele os problemas eram outros, 
 
rigoroso e conservador, ficava vermelho cada vez que o surpreendíamos com uma música 
 
profana ensaiada em segredo para que não houvesse tempo de sua censura. Depois da missa 
 
era certo o “pito”, que nos deixava indignados, mas com a sensação de ter vencido uma luta 
 
contra a forma enfadonha como as missas se apresentavam para a juventude da década de 80. 
 
Nas missas comemorativas incluíamos o chocalho tocado por Nel Bufinha ,também saudoso, o 
 
timbal tocado por Negão Garcez e Tinteiro e o pandeiro tocado por Cláudio Beleza. As 
 
coristas eram as irmãs Ferreira: Jane, Jacilda, Fátima e Gagau; todas filhas de Dona Dedê, 
 
Márcia de Trindade, para diferenciar de Márcia de Frederico, Jucinalva de Seu Dau, Riza de seu 
 
Deda e Conceição, irmã de Dinheiro. As vozes masculinas ficavam por conta de Caetano 
 
Barbosa, Cassiano, outros tantos que a memória não registrou e os próprios instrumentistas 
 
que colaboravam com muita boa vontade. Os ensaios eram uma derrota, pois tínhamos o ego 
 
muito elevado e nos sentíamos cantores profissionais, apesar de termos que muito ensaiar, as 
 
vezes durante toda a semana, para não fazer feio. Os fieis gostavam e até aplaudiam para o 
 
desespero de Padre Brito.
 
Era nessa época que Dona Leonor ,mulher de seu Júlio Brabo, ele brabo como 
 
o nome diz e ela, figura doce feito mel, pacientemente, cuidava da capela do São Roque. 
 
Enquanto ensaiávamos assistíamos o seu desfile entre os jarros de flores, trocando os panos 
 
brancos, lavados e engomados por ela mesma.As vezes um sorriso discreto mostrava que 
 
estava atenta as nossas peraltices.
 
Nas reuniões de quarta, as pautas decorriam sobre temas como sexualidade, 
 
doenças sexualmente transmissíveis, aborto, casamento, divórcio, amor, fé e tudo que nos 
 
afligia. Eram debates fervorosos, onde os mais imaturos terminavam levando pro pessoal e 
 
então tínhamos que apelar pra Jacilda... Santa Jacilda, que pacientemente e com aquele jeito 
 
de panos quentes, promovia sempre a paz desejada. Foi ali que aprendemos sobre direitos 
 
e deveres. Foi através dessa convivência que aprendemos a ouvir, respeitar as diferenças,
 
amar o próximo ou pelo menos tentar cada vez mais amar ao próximo como a nós mesmos... 
 
Continuamos tentando. Hoje, quem ainda está por aqui, nem todos tão católicos, mas 
 
certamente com princípios básicos que fazem a diferença por onde quer que andemos. Quem 
 
dera que nossos filhos tivessem as mesmas oportunidades de participar de grupos como O 
 
JUSR! Fica o registro.

MACHISMO NÃO TEM IDADE

Eram quatro jovens do sexo masculino, entre 19 e 21 anos; dois nos bancos 
 
à frente e dois nos bancos logo atrás de mim no coletivo. As duplas não se conheciam e a 
 
minha cadeira era a única divisória física existente entre os dois mundos daqueles jovens. Os 
 
da frente, com as mãos ocupadas por dois latões de cerveja, os de trás com livros e módulos 
 
estudantis. Para não confundir o digníssimo leitor , d’agora por diante, os chamarei de Zè e 
 
Mané, aos da frente e João e Tonho aos de trás. Com uma voz lenta devido ao consumo de 
 
álcool, Zé falava todo o tempo: - Qual é veio? To certo ? Mandei o cara se f... não como 
 
regue...Ele tirou onda comigo...Deu vontade de dá um soquete nele... E ainda vou dá! to nem 
 
aí...Mandou fazer a massa, eu fiz... bater o concreto, eu bati, quer mais o que? Não vou deixar 
 
ninguém me pisar veio... Você sabe que foi minha nega, que me arrumou o trampo ... Ela 
 
pensa que vai me governar... Tá por fora veio. Mulher não manda em mim. Quer que eu vá pra 
 
casa pra olhar minha filha... Prá ela estudar... Só vou quando eu quero... Ta ligado? (toque de 
 
telefone) Quer ver? É ela! Saca só! (atende o telefone) – Aló! O que é rapaz? Não deu pra te 
 
ligar... Tô no trabalho... (cutuca Mané que balança a cabeça estimulando) Sei lá que horas eu 
 
vou sair nega. O patrão me segurou aqui.(simula tristeza na voz) Tô retado mas, fazer o que? 
 
Deixa ele aí ... Que tem ele ficar só? Tem que aprender a se virar cedo veio. Três anos já ta na 
 
idade! Né não?(buscando aprovação de Mané que confirma com a cabeça)Ta... ta... Não sei 
 
que hora eu chego... Vá pra sua escola p... to te impedindo? Tchau! (desliga o telefone) Viu aí 
 
velho... Ela quer me governar. Só porque arrumou aquela bosta de emprego acha que manda 
 
em mim e o tio dela também, por isso que eu mandei ele se f...
 
As palavras de Zé e Mané, vinham se misturavam com a história da outra dupla de jovens.
 
João falava tentando dar conselho ao amigo: - Tá todo mundo em sua casa dizendo que você 
 
ta diferente! O amigo se irrita: - Isso é onda de minha mãe! Ela falou pra você não foi? A coroa 
 
é fogo, lembra quando a gente foi pra ilha? Ela dá Show, chora e depois fica tudo na boa. 
 
Eu to trabalhando, ganhando meu dinheiro e ... Agente muda né? Fala aí como é que ta seu 
 
João se ajeita na cadeira e imediatamente pude sentir a pressão dos joelhos projetados no 
 
encosto da minha cadeira. Devia ter pernas enormes aquele rapaz, pois não conseguia ficar 
 
quieto- Na boa velho! E você? Já se recuperou?
 
Numa boa...(diz Tonho) meu gosto velho é que ela ainda é doida por mim... é verdade! Quem 
 
me disse foi a colega dela... É deve gostar mesmo porque o que eu disse a ela quando soube 
 
do chifre velho... Era pra ela nunca mais olhar na minha cara.. Minha vingança é essa... ela é 
 
louca por mim e já mandei dizer: Esquece ( fala soletrando) Também não é pra menos . Você 
 
sabe que foi eu que tirei a virgindade dela...
 
Neste momento João fica irritado: - Você não disse que não tinha sido você quando terminou 
 
com ela? Você disse sim ! Tonho se concerta na cadeira:- Pois é velho, naquela época eu fiquei 
 
confuso... Não sei se ela tem hímem elástico, por que ela não sangrou... Sabe como é né? 
 
Mas depois eu pensei direito... Fui eu sim... Por isso ela ficou ligada em mim... Eu sei que me 
 
traiu, mas sei lá... Já partir pra outra... Agora to com uma mina... Gente boa, já seis meses. 
 
Comemorou aniversário e a zorra. Eu anotei né? É barril não lembrar! Não dei presente...
 
Dei um beijo e disse que amava... Mulher dá o maior ponto pra isso... Se não diz, fica logo 
 
desconfiada. Então eu digo logo... Você diz?

A HISTÓRIA DO VAGA LUME

Um dia um vaga lume por uma floresta para passear. Assim. Sem mais nem 
 
menos, porque os vagas-lumes, não precisam de um motivo específico para buscar 
 
diversão... Como nós por exemplo, que levamos as crianças para passear no dia dos seus 
 
aniversários ou no dia das crianças. Não. Os vagas-lumes não são tão óbvios. 
 
Bem... Neste passeio noturno; tinha que ser à noite ou não faria jus a escolha 
 
de um bicho que tem luz própria; Então o vaga-lume encontrou por um acaso; se é que 
 
acasos existam; uma libélula e ficaram horas a conversar. Se bem que a hora dos insetos 
 
não deve ter a mesma duração que a nossa... Inseto vive menos, portanto as horas 
 
representam séculos para eles. E não adianta me pedir uma fonte de referência, pois não 
 
a tenho. De qualquer forma a Libélula se apaixonou perdidamente pelo vaga lume . É 
 
claro que o leitor deve estar pensando nesta mistura de seres de espécies diferentes e na 
 
procriação de suas proles... mas a pergunta que vós faço é: quem disse que a libélula 
 
era fêmea e o vaga lume era macho. Pois, plagiando Cecília Meireles, não era nem isso 
 
nem aquilo. O fato é que se apaixonaram e comunicaram ao padre, ou pastor, ou juiz, ou 
 
qualquer autoridade que se achasse no direito de unir ou desunir pessoas ou insetos.
 
Na igreja, na toca, no fórum ou na gruta eles se encontraram para a cerimônia 
 
em frente a toda a bicharada, mas gostaria de afirmar que, nenhum homem ou mulher 
 
fora convidado, devido a mania bestial que a espécie tem de matar os insetos. Os 
 
gafanhotos falavam baixinho curiosos sobre o gênero do vaga lume, enquanto os 
 
besouros apostavam que a libélula morreria de tristeza ao perceber a loucura que ia 
 
fazer. Um besouro machão ainda tentou persuadi-la a desistir do casamento e fugir com 
 
ele a mercê do sofrimento do frágil vaga lume.
 
Várias iniciativas houveram pra impedir o ato .. todas homofóbicas e perversas 
 
alheias ao sentimento do vaga lume e da libélula que suspiravam transcendendo as 
 
possibilidades do amor celeste. E para felicidade dos noivos ou noivas... O sacerdote do 
 
ofício não conseguiu identificar o gênero que os definia. Então casaram os bichinhos 
 
numa cerimônia simples sem muitos galanteios e eles ou elas foram felizes por muitos 
 
anos de tempo de insetos. Não tiveram filhos, mas para que? Se já tem tanto inseto no mundo!

A história do Papa-Figo

Parece que é sempre no inverno que acontecem as coisas mais sinistras... devia 
 
ter uns oito anos, e isso faz muito tempo... Minha mãe descrevia o papa-figo de um 
 
jeito tão extravagante e recheado de mímicas que o meu coração parecia querer sair 
 
pela boca de tanto medo. O nome, era fácil de entender, se no lugar de figo colocarmos 
 
fígado. Pois é! Um homem que raptava as pessoas e comia o seu fígado, pelo menos , 
 
era a dedução que os adultos da época, pois segundo eles os corpos eram encontrados 
 
depois intactos se não fosse a falta do órgão principal do sistema digestivo.
 
 Assim eu passava noites acordadas imaginando o que fazer se um dia , no 
 
caminho de casa pra escola ou vice-versa eu encontrasse aquele monstro... Só podia 
 
ser monstro: todo vestido de preto e com unhas enormes sujas de terra. Nesta parte da 
 
descrição, eu logo imaginava que a terra nas unhas da criatura devia ser conseguida 
 
nas lutas travadas com as vítimas no momento de abrir-lhes a barriga para arrancar o 
 
fígado. O cabelo longo, se fosse hoje certamente seria um mega hee, Barbas e bigodes 
 
fartos que se misturavam e desciam até o estômago, descalço e não sei porque a imagem 
 
do pé do papa-figo foi o que mais ficou gravada. Pés grandes, mas proporcionais ao 
 
corpo com os dedos longos como se fossem das mãos. O detalhe macabro da minha 
 
imaginação era que o dedão do pé era no formato de um círculo achatado, com a unha 
 
encardida de sujeira, num preto que contrastava com a cor da pele amarelada do bicho.
 
Não foi fácil atravessar a infância com essa ameaça constante de ter o meu 
 
fígado arrancado à unha. Andei algum tempo com molho de pimenta dentro de um 
 
frasco de desodorante reservado dentro da pasta escolar, naquele tempo não existia 
 
mochila e se existia para mim era igual a caviar. 
 
Era incrível como cada época era marcada por um mito fantástico. Não sei se 
 
conseqüência de notícias que se sabia de violência, seqüestros... Era senso comum... 
 
todos falavam a mesma coisa... em algum lugar ,alguém sempre soubera da presença do 
 
Papa-figo e isso era dito, como um discurso de prevenção contra bandidos e marginais, 
 
que muito provavelmente estariam distantes da nossa cidade,naquela época.
 
Lembro-me do sermão de minha mãe, ao sair para a escola, avisando com 
 
veemência para não conversar com estranhos, segundo ela o papa-figo atraia as crianças 
 
com balas e doces , agarrando-as e prendendo-as num saco de alinhagem. Na escola a 
 
professora também fazia milhões de recomendações: - “Vão direto pra casa, se algum 
 
carro preto se aproximar corram e gritem socorro”.O coração dava pulos até a garganta 
 
e eu era obrigada a engoli-lo novamente, enquanto arrumava a pasta nas pressas e em 
 
meios a oração do Santo Anjo do Senhor que rezava durante o percurso ate chegar em 
 
casa. Oração forte! O papa-figo, nunca me pegou.

A Mulher que morreu de vergonha

Relatarei para os amigos leitores desta coluna, uma história contada pelo meu avô Pedro Ângelo, 
 
pessoa de grande sabedoria, falecido a mais de 30 anos atrás. A escolha desta história, dentre tantas outras, 
 
se dá, como conseqüência dos meus questionamentos sobre como comemoramos o dia da mulher e como 
 
entendemos seu papel na Sociedade. Começaremos então, como toda boa história deve começar: Era uma 
 
vez uma mulher muito bonita e muito, mas, muito inteligente. Observe caro leitor, que o reforço aqui é 
 
indício ainda de uma sociedade machista que considera a mulher um objeto sexual... Um dia, esta mulher se 
 
apaixonou e realizou seu grande sonho de se casar com o homem de sua vida. 
 
Neste momento gostaria de informar, que qualquer relação da vida real com esta história é mera 
 
coincidência mesmo que encontre fatos que se assemelhe com a vida da sua vizinha. A mulher passou então, 
 
a cuidar da sua nova casa e a ajudar o marido no cultivo de hortaliças e legumes. Teve o seu primeiro filho, o 
 
segundo filho, o terceiro filho. Não que ela verdadeiramente os tenha planejado, apenas deixava-os vir. Um 
 
dia, aquela linda mulher, diante de uma, entre as milhares de crises existenciais e de auto-afirmação, passou 
 
a se questionar sobre o amor de seu marido e perguntou: - Você me ama! – Ele a olhou, deu-lhe um beijo na 
 
testa, daqueles que encerra a conversa e virou-se na cama para dormir. Daquele dia em diante, a linda mulher 
 
passou a murchar como uma flor que seca no jardim. Resolveu executar um plano, chamou sua comadre, 
 
amiga e vizinha e decidiu que ia morrer. De fingimento claro, para saber qual a reação do seu marido ao 
 
encontrá-la morta. Saberia verdadeiramente a intensidade do seu amor por ela. Assim o fez, com o apoio da 
 
comadre. 
 
Não posso deixar de interromper a narração, lembrando às leitoras que esta experiência é de grande 
 
risco para as mulheres e aos maridos que nem todas as mulheres fingem morrer, algumas morrem mesmo. 
 
Então, no dia marcado, a linda e inteligente mulher, deitou-se na cama, colocou-se em posição de morta e 
 
avisada pela comadre, da chegada do marido prendeu a respiração. A sorte fora lançada! O marido entrou e 
 
diante das lágrimas stanislaviskiana da comadre, foi até o quarto constatar o fato. Olhou para o corpo inerte 
 
da linda mulher e pensou no quanto ela ainda era bonita, nos seus filhos e percebeu uma sensação de vazio 
 
dentro de si. Era fome! Já passava do meio da tarde e ele ainda não havia almoçado. Virou-se e informou a 
 
comadre enquanto saia em direção a cozinha: - Vou tomar banho, comer alguma coisa e de pois preparar o 
 
enterro.
 
É fácil imaginar o tumulto dentro do quarto depois da saída do marido. A vizinha correndo ao 
 
encontro da linda e inteligente mulher pedindo que desfizesse aquela loucura e ela coitada, em lágrimas 
 
dizendo baixinho: - Ele não me ama...
 
O fato é que antes que a mulher pesasse em se explicar ao marido, toda a vizinhança como por 
 
transmissão de pensamento, ficou sabendo de sua suposta morte. Invadiram sua casa, prepararam o café 
 
com biscoito para a noite do velório, ajudaram seu amado marido a colocá-la no caixão e a enterraram no 
 
dia seguinte, alheios aos gritos da comadre que a todo o momento tentava impedir a decida do corpo ainda 
 
vivo ao seu leito final. Dizia meu avó, que esta história aconteceu verdadeiramente e que era conhecida sob 
 
o título de: A mulher que morreu de vergonha. - Vergonha de que vovó? Perguntava eu aos meus 9 anos de 
 
idade e ele me respondia:- Da vida menina... Vergonha da vida! Ás mulheres e homens de hoje fica o lembrete 
 
de que mais vale viver de verdade do que morrer de vergonha.

Diabo x Santo Antonio

Contarei uma estória e gostaria que aqueles que acreditarem na minha narração não 
 
ficassem curiosos querendo que eu diga o nome da criatura que relatarei os fatos. Para evitar a 
 
identificação do dito cujo vamos chamá-lo de Lalando.
 
Era uma vez um menino chamado Lalando que acreditava na sorte. Acreditava também 
 
nos poderes de Deus como nos poderes do excomungado. Seus pais moravam em São Sebastião 
 
do Passé, desde que a cidade ainda era Vila. Devotos de Santo Antonio se incumbiam todo ano 
 
de realizar a trezena, mas o danado do menino, não queria saber de contrato com nenhum santo, 
 
caso aparecesse uma oferta boa pra ele, queria está livre pra negociar. Cresceu meio arredio, cheio 
 
de peraltices que deixava sua mãe com dívidas eternas de padres nossos e ave-marias e um lucro 
 
considerável para o dono do armazém na compra das velas que eram acesas na hora das penitencias 
 
que fazia para que os santos intercedessem pela educação do filho, não pela falta de inteligência, 
 
mas pela falta de caráter. Na escola era notável. Destacava-se nas atividades da sala de aula e nos 
 
esportes, no entanto os sapos que distribuía nas pastas das meninas eram motivos suficientes para a 
 
professora sapecar os bolos com a palmatória de seis centímetros de espessura.
Na adolescência era o preferido das meninas, pois se tornara um rapaz bonito. E nos 
 
tempos das brilhantinas que engomava os cabelos, uma mexa era sempre deixada propositalmente 
 
caída na testa. Ele sabia que as meninas não resistiam ao seu charme. Muitos quartos de moças 
 
foram visitados sem que os pais soubessem até o dia que o dito cujo foi pego com a boca na botija e 
 
teve que casar. Casou-se, a contra gosto, mas como o casamento não prendia homem, nem a mulher 
 
conseguiria se o quisesse... Continuou então a pular a cerca...
 
No dia 01 de junho, cansado de tanta luta para sustentar três mulheres cada uma com 3 
 
filhos, injuriou-se e declarou: To preparado pra fazer acordo com Deus ou com o Diabo... Quem 
 
aparecer primeiro com a melhor proposta... 
 
No centro da cidade havia um mercado que hoje está predestinado a extinção e que na 
 
época fazia grande sucesso principalmente com os bares de pessoas renomadas. Eram pontos de 
 
bate papo e de jogo que só encerrava depois das dez da noite. Lalando ficava depois que todos iam 
 
embora a circular o mercado chamando a “coisa ruim” pra um acordo, já que segundo ele, Deus 
 
não tinha aparecido com nenhuma oferta. Um dia, lá pelas tantas, contam os de boa memória que 
 
Seu fulano ouviu uma voz dizendo pra ele:- Você quer ficar rico? O homem se borrando de medo 
 
correu desesperado e ficou rodando a Praça Doze de outubro tentando decidir com qual mulher ia 
 
dormir. Dois dias depois ele voltou ao mercado dessa vez preparado para receber o mal-assombrado 
 
e acertar os detalhes do acordo.
Bem, daí deste ponto existe duas versões contadas pelo povo. A primeira versão conta que 
 
foi o pessoal dali mesmo do mercado que sabia do desejo dele de falar dom o Diabo que prepararam 
 
a farsa, o que Lalando descobriu mais tarde. 
 
A segunda versão, diz o seguinte: O diabo apareceu no mercado municipal à meia noite 
 
em ponto e fechou contrato com o Lalando. Daquele dia em diante ele ficaria rico como num passe 
 
de mágica, e em troca teria que deixar as duas mulheres, ser fiel a esposa ( o maior sacrifício) e 
 
criaria um sapo em seu jardim. Lalando aceitou a proposta, passou a ser fiel á esposa e preparou 
 
um jardim para abrigar o sapo. Nas sextas-feiras de lua cheia o sapo saia de trás das moitas para se 
 
alimentar. Era quando Lalando chegava com 30 quilos de carne para alimentar o bicho que já estava 
 
do tamanho de um urso, diz as mentes mais criativas. Com a morte de Lalando o sapo desapareceu 
 
conta meu informante, mas há gente que afirma que se alguém procurar,encontrará o bicho enorme 
 
escondido a espera da próxima sexta de lua cheia. 
 
O certo é que o tal homem ficou mesmo rico da noite pro dia, tinha um jardim frente 
 
de casa e odiava quando alguém insinuava sobre a existência do sapo no seu jardim. A mulher 
 
dele fingia que não sabia de nada, mas no fundo desconfiava que aquilo tudo fosse obra de Santo 
 
Antonio que para atender o seu pedido de ter um marido fiel se passara pelo Diabo. A riqueza se 
 
sucedeu depois que o homem deixou de vadiar e passou a se concentrar no trabalho e o sapo era 
 
uma brincadeira dela para punir Lalando pelas traições que sofrera. Eu hem! Mulher e Santo tem é arte!

Dona Nonô

Dona Nonô é uma daquelas pessoas que ao re-encontrarmos, imediatamente 
 
ativa nossa memória, e nos faz recordar de fatos que nos parecia impossível de 
 
lembrar. Tem mais de setenta anos, mãe de sete filhos e esposa do saudoso Julio Brabo. 
 
Moradores do bairro do São Roque desde que eu me entendo como gente, dona Nonô, 
 
para que os leitores tenham uma idéia nunca sentou em um banco da pracinha em frente 
 
a sua casa: - Nunca! – Afirma a criatura mostrando orgulho, e justificando que não 
 
tem tempo pra essas coisas. Inclusive declarou num passado distante que quem a visse 
 
sentada na praça poderia apedrejá-la. Por isso não senta.
 
A citada senhora, sempre ocupou seu tempo cuidando da família e afirma que 
 
foi graças a Júlio, seu marido, que os filhos hoje são quem são. “Bem criados! Porque 
 
Júlio era firme e dizia as professoras dos meninos, se tiver qualquer coisa, mande um 
 
bilhete...olhe... você sabe? Teve uma vez que Tonho (referindo-se ao filho Tonho da 
 
Cesta)chegou em casa e disse que a sala ia tomar suspensão...eu acho que era isso, uma 
 
coisa lá que a diretora ia fazer pra castigar eles... sabe? A professora abriu uma gaveta e 
 
tinha uma cobra... coisa de menino... de Tonho não! Ele sempre foi quieto!Júlio chegou 
 
do trabalho... eu falei... Ele foi atrás de Padre Brito, que era diretor sabe? E Dona 
 
flor...POIS Padre Brito disse logo: Se todos os pais fizesse como o Júlio. Falou isso por 
 
que não teve nenhum pai lá... só Júlio... E Tonho não teve o negocio na caderneta... a 
 
suspensão num sabe?”
 
Conta ainda que teve filho de dois. Que nunca na vida pensara nisso, pois 
 
acreditava que só acontecia com quem já tinha algum caso na família. E que foi muito 
 
enjôo que teve na barriga dos gêmeos. Isso se deu, justifica Dona Nonô, por que 
 
Julio, encontrou uma imagem de Cosme e Damião, na roça e levou pra sua venda e 
 
colocou lá, bem visível. “ Foi assim, depois que ele achou a imagem eu tive um sonho 
 
e contei. Estava eu e outras pessoas no sonho e Cosme e Damião, fazendo assim pra 
 
mim... Me jurando com a mão, mas eu não imaginava que ia ter dois. A gravidez foi 
 
difícil e a menina foi tirada a ferro, o outro nasceu vivo e um pouquinho depois morreu 
 
na maternidade. Botei o nome de Raimunda, na menina, em agradecimento a São 
 
Raimundo, pois foi quem eu rezei pedindo... São Raimundo era parteiro sabe?”
 
 Lembrei-me do caruru que ela dava e só parou quando a filha Mundinha fez 
 
cinqüenta anos... O que foi uma grande perda para todo o bairro do São Roque, pois 
 
era acontecimento sócio cultura que ninguém queria perder. Eu mesma não perdia um 
 
caruru de São Cosme.

EU ESTAVA LÁ

 

 

Eu devia ter lá meus dez anos de idade e o mundo me parecia um enorme parque 

 

de diversões. Era período de férias e o São Roque era invadido pelos pequenos donos do 

 
mundo: Marilson de Marilene, Roberval de Deda, Otávio de Hilda, Welligton de Mira, 
 
Orlandinho de Orlando Luz, Véio de Éster Correia, Beto de Albino, Elton de Edilho, 
 
Bebeu, Paulinho, netos de Benzinha, Véio de Seu Tomás, Juca de seu Lourenço, Jorge de 
 
Dete, Rivaldo neto de Malu e Dó meu irmão. Havia outros que agora a memória não me 
 
permite relacionar. Eram poucas as meninas que se habilitavam a ficar mo meio desta luta 
 
de poder. Às vezes eu e Teresa (Cari) de Judite tentávamos desarticular o clube do bolinha, 
 
no entanto o cerco era muito forte e voltávamos ao território feminino. Todos aqueles 
 
meninos eram encapetados, levados da breca. Causavam zangas e fuxico entre as mães que, 
 
tentavam inocentemente descobrir no filho da outra a representação do capeta. Barra, bate-
lata, picula, baleou meinho, eram as competições que estimulavam os gritos da torcida 
 
e por fim o quebra-pau que rolava depois de cada brincadeira. Nas férias, era permitido 
 
dormir tarde e ficávamos na praça, vigiados pelas mães que se debruçavam nas janelas de 
 
suas casas ou repoiavam-se nos passeios em pequenos grupos onde colocavam a conversa 
 
Num dia de quarta-feira, por volta das oito horas da manhã, fui jogar o lixo 
 
naqueles depósitos horrorosos que eram colocados pela prefeitura nos centros de cada 
 
bairro. Seguida por meu cachorrinho pé-duro eu brincava com o balde de lixo e no meio 
 
da pracinha percebi um silêncio que não era comum no meu bairro. Roberval, Geane de 
 
Dona Dedê e outras crianças estavam no barranco da casa de Mituca-boca de barulho e 
 
faziam sinal para mim, apontando uma mulher que caminhava em minha direção. Olhei em 
 
volta e à distância, nada de anormal notei naquela mulher loira de vestido floral , cabelo 
 
longos e pés descalços. Tornei a olhar em volta e percebi que os adultos colocavam as 
 
crianças apressadamente para dentro das casas e trancavam as portas. Em poucos minutos 
 
o São Roque estava praticamente deserto com exceção de mim e da mulher loira que se 
 
aproximava. Quando a mulher se aproximou, numa distância de dois metros e estendeu a 
 
mão na minha direção, ouvi um estridente grito de alguém que tentava me alertar : Corre!
 
Com o coração disparado e sem perceber quem gritara encarei a mulher. No lugar 
 
dos seus olhos havia dois buracos e das laterais de sua boca saíam duas enormes presas 
 
pontiagudas. A pele do seu rosto era pálida como de um cadáver e com a boca entreaberta 
 
senti que ela iria me devorar. Desta vez fui eu que gritei aterrorizada. Numa rapidez 
 
sobre-humana apanhei o filhote que estava encolhido de medo e corri para casa, chorando 
 
desesperada. Levei em torno de meia hora para me acalmar e relatar os fatos à minha mãe 
 
que ao sair na rua encontrou vários curiosos contando cada um a sua versão da mulher 
 
misteriosa. Algumas horas depois, na venda do finado Chico do Porco pude ouvir os relatos 
 
das pessoas que perseguiram a mulher até ela evaporar: Disseram que ela virou fumaça na 
 
rua da Malhada. No final de semana ouvi Zelito, do Bar Canequinho contando que a dita 
 
mulher entrara no seu bar, pediu um cigarro, acendeu e entrando no banheiro, evaporou.
 
Vários boatos ouvimos na época. Alguns diziam que ela crescia na frente das 
 
pessoas ficando com até cinco metros de altura. Isto eu não vi, não posso afirmar, mas 
 
aqueles buracos no lugar dos olhos e aqueles dentes enormes, eu vi . Nesta época eu ainda 
 
não tinha minha Kodak tira-teima. Que pena!

O LOBISOMEN DO SÃO ROQUE

Estávamos no ano de 1978 e a curiosidade sobre os mistérios da vida já há 
 
muito me inquietava. A melhor forma de me manter bem informada era escutar atrás da 
 
porta as conversas dos adultos. Sim, pois naquele tempo, as crianças eram retiradas da 
 
sala, na melhor parte da conversa, coisa que me deixava totalmente transtornada. Ouvia 
 
inicialmente meu avó Pedro Ângelo, contar as estórias dos lobisomens do Curralinho, que 
 
eram expulsos a tiro de espingardas das casas de farinha; depois, os relatos de tia Iaiá, sobre 
 
o lobisomem do bairro do Alegre. Esta jurava ter visto o tinhoso de quatro-pé, rosnando em 
 
sua direção. 
 
Uma coisa era certa, sempre se sabia quem era o infeliz, que, por ter batido na 
 
mãe se transformava em uma besta-fera nas noites de lua cheia no período da quaresma. 
 
Todas estas estórias eram como gasolina na fogueira, estimulavam minha curiosidade e 
 
claro; minha vontade de ver um lobisomem.
 
Um dia, próximo dos meus 12 anos, ouvi uma conversa do saudoso Zequinha da 
 
Galinha: Ele tinha visto “sinais” de que um “tal fulano de tal”,estava virando lobisomem 
 
no bairro do São Roque. Afirmava veementemente, ter visto o bicho e reconhecido a 
 
figura humana por baixo daquela aparência enorme de cachorro com a cara larga. Segundo 
 
Zequinha, a besta corria pelo bairro, principalmente pelas ruas da bastiana, Pedro Teles e 
 
nas imediações da capela do São Roque. Parece que o pobre coitado tinha sido perseguido 
 
por moleques, mas acabara por escapar.
 
Faltavam duas semanas para a sexta-feira santa e tive que correr contra o tempo 
 
para ver o lobisomem, pois a lua cheia se aproximava.Visto o perigo que representava 
 
os meus planos, tentei consegui alguns aliados e colaboradores, mas o medo impedia os 
 
colegas de investirem no meu projeto macabro. Na noite de lua cheia, peguei a minha 
 
máquina Kodak tira teima, e me postei com o rosto grudado na portinhola da janela do 
 
quarto da frente da minha casa. Dali eu podia ter uma visão ampla de quem subisse 
 
ou descesse aquelas ruas do alto do São Roque. À meia noite em ponto, ouvi um uivo 
 
aterrorizante. Segurei a câmara com força me colocando em prontidão. Gritos de homens e 
 
passos rápidos foram ouvidos e por mais que eu me movesse, não conseguia ver da janela 
 
o que se passava. Tentei criar coragem para abrir a porta, mas concluir que não valia a pena 
 
acordar meus pais e certamente tomar uma surra por causa de um lobisomem.
 
No outro dia, levantei cedo e corri para a rua; as pessoas não falavam noutra coisa. 
 
O lobisomem tinha sido ferido em frente a capela do São Roque. Fui conferi e lá havia em 
 
cada degrau da escadaria da igreja, duas pegadas de sangue, em forma de pata de cachorro. 
 
Acho que parecia com pata de cachorro. Tentei descobrir o que tinha acontecido, mas como 
 
disse no início, naquele tempo, criança era tirada da sala na melhor parte da conversa. 
 
Entre pedaços dessas conversas, descobri que o homem que era Lobisomem foi liberto 
 
da maldição, devido a ferida feita pelos seus perseguidores que na verdade eram amigos 
 
tentando libertá-lo. E ainda vive até hoje o fulano de tal, mas não conto quem é, nem a 
 
adulto nem a criança. Deus que me livre!

Os ratos de minha filha

Eu estava sentada na sala, observando minha filha de sete anos, que 
 
assistia um desenho animado em um desses canais fechados, enquanto 
 
me perguntava como ela conseguia ficar um turno inteiro assistindo uma 
 
série daquele desenho. O nome do desenho é Padrinhos Mágicos. Nossa 
 
senhora! Imaginem vocês que um garoto chamado Timi, personagem 
 
principal da história, possui dois, não um, mas dois padrinhos mágicos, 
 
que atendem pelos nomes por Vanda e Cosmo. O garoto Timi é um 
 
desequilibrado que não sabe o que quer e o padrinho Cosmo, expressa 
 
pela forma de agir e pensar a impossibilidade de ter um cérebro. 
 
Perguntei a minha filha o que ela tanto gostava naquele desenho e ela me 
 
respondeu sem pestanejar: A burrice de Cosmo...
 
Bem, na verdade o motivo desta introdução foi para relatar o cenário 
 
que eu me encontrava, quando recebemos a visita de um casal de amigos 
 
fazendeiros que nos fornece leite, daqueles que a nata bóia em cima da 
 
vasilha com menos de uma hora depois da ordenha. Meire depois das 
 
saudações de costume cheia de beijos e cheiros. Ela tem a mania de me 
 
cheirar e fazer comentários sobre o meu cheiro, sobre meus cabelos, 
 
mas é assim com todo mundo de forma que eu já a chamo mentalmente 
 
de “senhora toque”. Alma boa, mas não tão boa assim, como pude 
 
perceber quando ela chamou Aleteia, a minha filha, e ofereceu um casal 
 
de hamister ( Ai meu Deus ela quer dá ratos a minha filha!) com a resolva 
 
claro que somente se eu permitisse. Foi uma Guerra de olhares, enquanto 
 
tentava rapidamente descobrir um motivo para me livrar daquele 
 
presente, que me causava arrepios, tentava emboçar um sorriso de 
 
gratidão pela gentileza enquanto ouvia as palavras dela vindo de um lugar 
 
bem distante, explicando porque não podia ficar com os animais, apesar 
 
dela estar a um metro de mim. Enquanto isso minha filha não parava 
 
de implorar da forma mais sensacionalista possível: Ajoelhada e com as 
 
mãos posta uma na outra e em postura de oração - Deixa mãe! Deixa! 
 
Deixa! Deixa! Prometeu que cuidaria dos bichinhos, daria água e comida e 
 
nunca, nunca mesmo deixaria sua casinha suja! Não resistir. Deixei.
 
Hoje, dois meses depois deste fatídico episódio, e de lutar diariamente 
 
contra a minha aversão a ratos, sou obrigada pela responsabilidade 
 
natural de quem respeita a vida ( mesmo de ratos) a trocar a água dos 
 
bichinhos, colocar a comida e limpar as cacas que eles espalham e que se 
 
misturam as rações próprias para esta espécie. Sem falar no marido que 
 
nem chega perto dos bichos, mas não pondera na hora de me chamar às 
 
responsabilidades falando com uma carga de censura – Os ratos estão 
 
sem água! 
 
Para concluir, me vejo novamente limpando a casinha dos ratos enquanto 
 
a pequena manipuladora está sentada em frente à TV rindo da falta de 
 
inteligência de Cosmo – O padrinho mágico mais burro que eu já conheci, 
 
se bem que nunca tive padrinho mágico ou soube de alguma criança que 
 
tenha tido, mas minha filha afirma que eles existem! No fundo, acho 
 
que se eles existes, provavelmente fui enfeitiçada por um, igualzinho a 
 
Cosmo, na hora que aceitei assumir esses bichinhos. Mas neste caso a 
 
burrice foi minha.

Raios e trovões

Raios e Trovões
 
Quem nos dera coragem e petulância para duvidar verdadeiramente da 
 
crença de nossos antepassados. Por mais que tenhamos o conhecimento de todo processo que 
 
antecede e provoca os raios e trovões, nos é impossível repreender aquele frio na barriga 
 
quando presenciamos um raio cortar o céu de um lado a outro, principalmente quando 
 
acompanhado ao raio, ouvimos o som ensurdecedor da trovoada. Aí então, toda a nossa 
 
lógica e conhecimento científico vão para o espaço e corremos para cobrir os espelhos de 
 
toda a casa. Para piorar a situação sempre nos lembramos dos casos contados pelos mais 
 
velhos, a exemplo do caso de uma Senhora que alheia aos avisos dos vizinhos, insistia em 
 
soltar as baforadas de cachimbo debruçada na janela , enquanto tinha o rosto clareado pelos 
 
raios enfurecidos. Um dia, conta Luiz; que ouviu de seu pai Honorato; depois de uma noite de 
 
relâmpagos, a pobre mulher foi encontrada estática na janela e ao ser tocada havia virado 
 
cinza. Outro caso é o de um Senhor que toda vez que via um raio, desafiava o relâmpago na 
 
porta de sua casa simulando um duelo, com o punho fechado como se segurasse uma espada 
 
o “herege” fazia acrobacias como se lutasse com o raio enquanto dizia para o desespero dos 
 
presentes “venha raio!”. Imaginem estimados leitores o desespero que foi quando um raio 
 
aceitou o desafio e compareceu ao duelo: mais um pobre coitado havia virado cinza.
 
 Há quem jure ser tudo isso verdade. Lá em casa em dia de trovoada, não precisava 
 
nem mandar apagar todas as luzes pois era certo faltar energia, então ficávamos às escuras, 
 
quietos. Era proibido falar, então todos nós sentávamos no sofá e cochichávamos uns nos 
 
ouvidos dos outros, mas quando deixávamos escapulir os risinhos faceiros de criança, 
 
mainha e painho vinham logo ralhando - Olha o respeito! – e dali em diante, recebiamos 
 
aulas sobre os poderes de Deus, principalmente de sua ira, representada pelos raios e 
 
trovões. Tudo isso no escuro e cochichando. Diante disso, não me culpo, quando hoje, em 
 
noite de trovoada me pego sentada no sofá quieta, cabisbaixa e quando necessário falando 
 
baixinho...prefiro não arriscar.

Águas milagrosas

Eu sempre passava dias na casa de minha tia Zinha. Bonita e grande; é assim que me 
 
lembro dela. Recebia-me nas férias letivas, no mês de janeiro. Ela morava nas imediações 
 
do bairro da Brasília, do lado de Dona Baia, (Baia era o nome de uma mulher) seguindo 
 
no sentido do atual bairro de Araçatiba. Resumindo, perto do “Brega” que teve o seu fim 
 
atribuído ao advento do progresso municipal e das doenças venéreas. Quando o rio Pojuca 
 
enchia, suas águas invadiam o quintal da casa de minha tia e então instalava-se a situação
 
favorável a pescaria de garrafa. Logo depois do natal e festejos do reveion, o material
 
necessário era encontrado em cada esquina: garrafa da famosa Cidra. Recolhíamos muitas
 
delas e passávamos horas ralando o fundo de cada garrafa no cimento dos passeios da casa
 
até que o fundo soltasse, amarrávamos fato de galinha num cordão ou náilon e colocávamos
 
dentro das garrafas. O cordão tinha que ser longo e na outra extremidade amarrávamos um
 
pedaço de pau. Jogávamos as garrafas nas imediações das margens do rio e enfiávamos 
 
a madeira na lama para evitar que a garrafa se perdesse ou fosse arrastadas pelas águas. 
 
Ali ficávamos brincando até dá o tempo de fisgarmos camarões e pitus com bocas 
 
enormes.Voltávamos para casa eu e meu primo “Cula” que limpava os bichos e entregava 
 
a minha tia, para que fosse preparado o escaldado de pitu aferventado. Que delícia! O 
 
rio não era ameaçador, era calmo e convidativo. No entanto, minhas férias sempre eram 
 
interrompidas, pois acabava por ser devolvida antes do tempo por causa das minhas 
 
traquinagens: Minha tia tinha medo que um dia eu sumisse entre o quintal e o rio. 
 
voltar da casa de minha tia com queixas, me consolava com os domingos . Era neste dia da 
 
semana que eu fazia o melhor passeio do mundo. Depois de um café reforçado, por volta 
 
das dez horas íamos todos para a fonte da saúde. A fonte na verdade, eu nunca vi. O que eu 
 
via era uma seqüência de banheiros com chuveiros que tinham uma força d´água que me 
 
deixava sem ar. Esses banheiros eram administrados pela família de Seu Zé Branco e do 
 
lado, ele tinha uma quitanda que vendia de carne de fígado ou fígado doido ou fígado de 
 
boi salgado à amendoim coberto com açúcar caramelizado. A destruição para os hiper-
tensos e diabéticos. Como não tinha nenhuma das duas doenças me acabava entre o doce e 
 
o salgado sem culpas. Não lembro quanto custava cada banho. Só sei que era apenas uma 
 
moeda de cruzeiros. Muitas vezes ficava a imaginar, quantas moedas painho gastava por 
 
domingo, visto que eu e meus dois irmãos não parávamos de entrar e sair dos banheiros, 
 
exibindo os corpos magricelos sempre vigiados por minha mãe. Diziam que aquela água 
 
curava as pessoas e que o banho afastava as doenças, alguns anos depois a fonte secou, 
 
dizem que foi por causa de um poço furado lá atrás do parque de exposição. Tenho imensa 
 
saudade das brincadeiras que inventávamos nos intervalos dos banhos enquanto outros 
 
ocupavam os banheiros. A única coisa que me assustava, era atravessar a ponte velha ou 
 
ponte da saúde como era conhecida antes de caonstrução da outra ponte no sentido de Catu. 
 
A água do rio que passava por baixo daquela ponte não parecia a mesma água do rio que 
 
beirava a casa de minha tia. Do rio que me oferecia camarão, pitu e piabas deliciosas 
 
quando amarradas na folha de banana.Eu tinha medo porque, naquela época já era velha a 
 
ponte, e tinha mais medo ainda quando um caminhão a atravessava e me obrigava junto 
 
com meus pais a usar aquelas laterais para pedestres chamadas salva-vidas. A água lá 
 
embaixo parecia me chamar... Mas valia a pena o sacrifício para usufruir das águas da fonte 
 
milagrosa.
 
 

 

Foto: Benedita da Silva

Homenagem a Mulher

 

Cátia Garcez

 

Clarice Lispector disse “Sejam vocês mesmas”. Shakespeare afirmou “Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com freqüência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar. Platão afirma “O segredo é não correr atrás das borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você... E que nós mulheres sejamos fortes como sempre fomos, meigas com aqueles  que nos rodeiam e feliz sendo nós mesmas!

Não esperemos pelo reconhecimento do nosso pai, patrão, marido ou filho. Sejamos felizes agora, neste instante. Não esperemos o dia da mulher, o dia do amanhã. Deixemos de lado o peso das heroínas, das Amélias, das Gabrielas... personagens criados pelo quotidiano da ficção machista, essas não nos servem mais.

 Convoquemos então todas as nossas amigar, irmãs de sangue e de alma, colegas, vizinhas e façamos homenagem umas as outras. Que cada dia seja eterno, que cada instante seja eterno. Que a busca seja por nós mulheres mães, revolucionárias, operárias, autônomas, desempregadas, silenciadas, mas felizes!

 Cada instante é nosso e  é para nós que devemos brindar o amor “entre os homens” e as mulheres, pois  como diz Carlos Drummond de Andrade “Amor é  o que se aprende no limite (...). Amor começa tarde”  e como mulher afirmo: Nunca é tarde para ser feliz!