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Literatura

 

 

A HISTÓRIA DE BERTA

 

 

Cátia Garcez

 

Berta acordou assustada com medo de perder o horário. Joaquim saia às cinco e meia para trabalhar e era ela que tinha que acordá-lo. Tudo era tão mecânico que Berta já saia da cama como um robô. Chegava em frente ao espelho, olhava o desalinho dos cabelos e resmungava algo incompreensível até pra ela mesma, enquanto amarrava-os num rabo de cavalo e depois em um coque no alto da nuca. Escovava os dentes olhando-se sem ver, já calculando o tempo. Entre uma cuspidela e outra chamava Joaquim pelo nome com rispidez:

- Joaquim... Joaquim... Levanta, ta na hora. - Lavava a boca rapidamente enquanto ouvia o marido saindo da cama com palavrões mostrando sua insatisfação por ser acordado.

Todo o dia Berta cruzava com o marido. Ele saindo do quarto e ela saindo do banheiro. Nenhuma troca de olhar, nem um bom dia. Para ele parecia ser suficiente saber que ela estava ali cumprindo aquele ritual de mais de 30 anos. Na cozinha Berta despeja dois ovos na frigideira com óleo frio enquanto espera a água do café ferver. Duas colheres de pó de café bem medidas no coador de pano era o ponto do café de Joaquim. Nem muito fraco nem muito forte. No ponto. Ao pão com margarina eram acrescentados os ovos fritos e bem passados.

 Novamente, Berta chamava Joaquim, desta vez avisando que o café estava pronto. Ele aparece na porta da cozinha e ela lhe entrega a caneca de plástico azul e o pão recheado de ovo frito. Ele pega sem cerimônia e morde o pão como uma obrigação diária. Engole tudo com pressa e sai limpando a boca com a manga da camisa. Vai-se embora enquanto Berta acompanha o marido com o olhar perdido até ele dobrar a esquina.

Todos os dias aquela mulher pensa o que será dela quando Joaquim partir, pois era certo que ele partiria antes dela, ou então o mundo seria muito injusto. Berta jamais deixaria de cumprir suas obrigações de esposa. Isso era algo sagrado. Mas dentro dela já havia uma impaciência na espera do dia da morte do marido. Morte natural, pois Deus Livre de lhe desejar o mau. Todos iam um dia e o dia de Joaquim Deus havia de já ter definido.

Assim Berta estaria livre e imaculada, pois teria suportado todas as penúrias de uma esposa fiel e dedicada. Toda penitencia um dia haveria de acabar, inclusive Berta já havia deduzido qual seria a causa morte de Joaquim, visto que seu coração não estava lá muito bom. Seria assim então: enfarto.

Esperaria resignadamente pelo dia que Deus chamasse Joaquim para o descanso dele e conseqüentemente para sua própria liberdade. Neste dia acordaria tarde, com o sol já alcançando a cama através da janela e olharia o travesseiro vazio do lado onde antes deitava o marido. Não sentiria saudade, nem felicidade, apenas um contentamento. Levantaria pela primeira vez, completamente nua e andaria pela casa, sentindo-se em fim, dona de si mesma.

O sol se punha e à tarde do final de primavera teimava em não escurecer. Berta sentou-se no passeio da frente de casa enquanto olhava as crianças que brincavam de amarelinha. Já havia preparado o cuscuz de tapioca para Lucas e o bolinho de estudante para Sabrina e Ana Júlia. Esses eram os quitutes que faziam sucesso na casa da vovó Berta. Os três chegaram no dia anterior e ficariam até depois do natal. Berta sabia que o seu trabalho dobrava com a chegada dos netos, mas era preferível à solidão em que vivia naquela casa.

-Vovó, estamos com fome. - Falou o pequeno Lucas com os olhos expressivos que lembravam a mãe quando tinha aquela idade.

Tratou de levá-los para dentro de casa e distribuir o café para aquelas cabecinhas que mal apareciam sob o nível da taboa da mesa da cozinha. Os pais das crianças chegariam na entre véspera de natal e certamente trocariam presentes numa mesa farta rodeada por toda a família.

Enquanto auxiliava os netos nos controles dos talheres, Berta enrugava a testa lembrando-se do natal do ano anterior.  Como sempre, o marido de Berta chegara tarde para a ceia, com cheiro de bebida exalando pelo corpo e no momento da troca de presentes, alem de não ter comprado nada para as crianças, contava piadas grosseiras, deixando todos constrangidos. O dito companheiro, sempre era o primeiro a servir-se das guloseimas da mesa natalina. Servia-se de porções maiores do que conseguia consumir. Arrotava alto, sujava o chão em volta da poltrona que estava sentado, como se a todo o momento fizesse questão de mostrar a todos os presentes que não os queria em sua casa.

Berta fingia não perceber suas indelicadezas para evitar maiores constrangimentos. Nem os netos faziam seu marido mostrar sensibilidade com o período natalino.

Apesar de saber que Joaquim não gozava de boa saúde, não o controlava nos excessos com a comida. Deixava-o a vontade. Ele que se cuidasse por si mesmo. Pegava-se novamente pensando na morte do marido e ali bem na frente dos seus netos que tanto amava. Sentia uma mistura de culpa e impotência. Será que as crianças chorariam pela morte do avô que se mostrava sempre tão indiferentes para com elas? Certamente que não. O medo de Berta era saber que o seu marido era bem capaz de morrer na semana do natal, só para contrariar e estragar a festa que em vida nunca conseguira impedir.

- Está rezando vovó? – Agora era a voz de Ana Júlia que a despertava de seus pensamentos.

- Sim querida. Rezo para que tenhamos um feliz natal.

Só para si mesma Berta se perguntava se não seria melhor que Deus o levasse logo, naquela semana, afinal duas semanas antes do natal, daria tempo para o funeral e depois uma ceia em paz.

***

À noite, ela e os netos estavam sentados em volta da mesinha de centro enquanto Berta com um livro aberto contava a história de Emília à boneca de pano, personagem de Monteiro Lobato. Gostava de contar as historias infantis instigando seus netos a refletirem criticamente sobre o que ouviam:

-Vovó, Tia Nastácia não tinha mãe?- Perguntou Sabrina que era a mais velha dos netos.

- Acho que não querida- respondeu Berta, pensando que seus estímulos estavam funcionando.

- Não tinha parente nenhum? Coitada da Tia Nastácia. É muito triste não ter ninguém. – Falou o pequeno Lucas mostrando tristeza.

- Porque Monteiro Lobato não contou a História de Tia Nastácia? I indagou Ana Júlia.

Naquele momento Sabrina explicou aos irmãos o papel que os negros desempenhavam no período em que o autor criou as histórias do “Sítio do pica-pau Amarelo”. Berta sentia orgulho dos netos e da criação que a filha havia dado pra eles. Eram questionadores e inteligentes. Adoravam ler. Na verdade só liam histórias antigas como as de Lobato quando vinham a sua casa em férias, pois na casa deles possuíam muitos livros de literatura infantis mais adequados, atuais e que abordavam as temáticas sociais com uma visão mais igualitária.

 Ouviram o barulho do portão anunciando a chegada de Joaquim.  Lucas e Ana Julia correram para encontrar o avô e este os recebeu com um olhar de pouco caso. Lucas tinha a mania de agarrá-lo em uma das pernas e ficar pendurado, enquanto Joaquim o arrastava entrando pela sala.

- Me solta moleque!- Falava Joaquim tentando disfarçar a graça que achava da atitude do menino. Neste momento Sabrina se dirigia em direção ao avô e tirava o irmão que relutava se afastar, enquanto Joaquim já demonstrava impaciência com a cena.

Esse era o momento de Berta ligar a TV e colocar num canal de desenho animado. Esta atitude funcionava como milagre para acalmar aquele momento de crise diária enquanto os netos estavam de férias.

***

Estava exausta. Passou o natal e fora exatamente como havia imaginado: Joaquim com suas grosserias e o genro pressionado a família para ir embora, pois se sentia desconfortável com as indelicadezas do sogro. Com muito custo Berta conseguira fazer sua filha ficar por três dias e agora só restava ela e o marido naquela casa quase fúnebre.  

Acordou às quatro e meia da manhã e começou a por a casa em ordem, catando os objetos espalhados pelos netos e filhos durante os festejos natalinos. Copos descartáveis e garrafas pets inundavam o quintal e precisava recolhê-los e colocá-los pára a coleta de lixo. Era domingo, haveria coleta? Os vizinhos já amontoavam seus lixos em frente a casa, em meio a cachorros de rua que tentavam achar as sobras de frangos e perus que inalavam o cheiro ruim. Porque sofria tanto com assuntos como esse? Levou mais de uma hora para decidir se colocaria ou não o lixo em porta de casa e por fim decidiu colocar oito sacos: o primeiro com material orgânico, com resto de comida e embalagem apropriada para evitar os cães; o segundo com material de vidro identificado com um papel escrito em letras de bastão para evitar acidentes com os garis e com quem mais fosse manusear este pacote; o terceiro e quarto sacos com plásticos amarrotados de copos descartáveis e das eternas garrafas pets; o quinto com os intermináveis papeis de presentes, guardanapos, toalhas e higiênicos retirados dos banheiros da casa; sexto saco com folhas da amendoeira varridas do quintal; sétimo com as peças de roupas de uso pessoal, que descartava anualmente, este também com um aviso explicando se tratar de roupas usadas em bom estado de conservação e por último o oitavo saco com as cinzas do carvão utilizado para o churrasco do dia de natal. Se o carro de coleta não passasse, seria um grande transtorno transportar aquele lixo para dentro de casa até o outro dia e foi o que teve que ser feito. Enquanto Berta recolhia o lixo, podia sentir o cheiro forte exalando, dos lixos dos vizinhos rasgados pelos cães e espalhados pela rua. Bem, fizera sua parte. Na segunda-feira colocaria tudo de novo na frente de casa e certamente a coleta aconteceria.

 Berta agora já pensava no que faria para o almoço. Tirou o peito do frango temperado da geladeira recheou na cebola e óleo, cortou miúdo e fez um estrogonofe. Coisa pouca pra ela e o marido. Para acompanhar, preparou um arroz recheado e salada de grão de bico, um suco de graviola, o preferido de Joaquim. Olhou o relógio, estava atrasada. Teria apenas quarenta minutos para tomar o banho e chegar à igreja a tempo de ainda achar um lugar para sentar, pois a missa começaria as oito horas. Entrou no quarto em silêncio para não acordar o marido que ainda dormia, pegou o vestido de linho azul turquesa e as presilhas dos cabelos e foi direto para o banheiro.

Berta já não se olhava mais, apenas o necessário para corrigir algum fio de cabelo que insistisse em desprender dos grampos do coque no alto da cabeça. Seu corpo há muito que já não observava apesar do espelho ser grande o suficiente para não deixá-la esquecer de como ainda era jovem e bonita nos seus cinqüenta e cinco anos. Berta ainda sentia uma grande vontade de fazer sexo, mas evitava esses pensamentos, pois não queria pensar em algo que não poderia resolver de forma satisfatória. Desde que o marido ficara impotente, decidira viver sem sexo e ocupar a mente com costuras e pinturas entre uma missa e outra. Ficava satisfeita com a água do chuveiro descendo sobre seu corpo até aliviar a tensão entre suas coxas.

Arrumou-se, percebendo que o vestido azul mostrava um corpo com curvas e formas. Era como se Berta se mantivesse vigilante para o dia da liberdade. Como se precisasse saber que um dia precisaria ser bela, não naquele momento, mas um dia que ainda viria. Seu coração e sua mente eram de uma jovem adolescente que ainda sonhava com um príncipe encantado e o marido ali em sua frente era o vilão responsável por toda a sua desgraça.

É claro que Berta sabia que tudo isso era uma grande ilusão. Uma fuga que encontrara para não sair daquela vida que tanto a incomodava. Sabia que o marido não podia ser responsável pelos seus infortúnios, mas preferia culpá-lo por tudo, inclusive por ainda menstruar, única prova cabal de que estava viva enquanto fêmea. Apesar de a consciência sana obrigá-la a encarar sua própria culpa por não ter tomado as rédeas da própria vida, essa mesma lógica o apontava como opressor social. Joaquim era ele mesmo e ao mesmo tempo a figura do homem que castra, limita e oprime respaldado por uma sociedade machista e preconceituosa.

 Bateu o cadeado do portão da frente da casa e ouviu a voz rouca do marido chamando-a. – Estou indo a missa. – respondeu num tom severo de quem não aceita argumentação. Ficou quieta ouvindo o silêncio na expectativa que o marido criasse uma desculpa para que ela não saísse. Virou-se e desceu a ladeira debulhando o terço de Nossa Senhora:

- Ave-Maria cheia de graça, o senhor é convosco. Tomara que ainda tenha lugar pra sentar na igreja, pois não suporto assistir a missa inteira em pé. Bendito sois vós entre as mulheres. Tomara que o padre não esteja inspirado hoje, porque quando se inspira, Deus me livre, resolve fazer o sermão do mundo todo em apenas um domingo, e aí já sabe, chego em casa meio dia morrendo de fome. Será que ele não sabe que nem Deus, nem eu temos tempo pra conversa fiada? Bendito é o fruto do vosso ventre...

 Berta chega na igreja e senta-se todos os dias no mesmo lugar. Se o lugar estiver ocupado ela pede que o invasor troque de lugar, como se fosse proprietária do banco. Gosta de ficar perto do Altíssimo. Assistiu a missa com devoção, pedindo a Nossa Senhora que tirasse aquele pensamento da morte do marido de sua cabeça. Deus sabia que ela não era uma mulher má e não queria ir para o inferno. Pra falar a verdade, pra começar não queria era morrer, muito menos ir para o inferno, mas isso não poderia evitar. No entanto, Berta acreditava que haveria de morrer depois de Joaquim, tinha o direito de ter um pouco de sossego nessa vida.

Felizmente o padre, ao contrário do que acontecia nos outros domingos, naquele dia estava com uma pressa suspeita, justificada a boca miúda por uma viagem a capital, para um almoço com o bispo. Parece que seria homenageado, por a paróquia ter alcançado a cota estabelecida para arrecadação do dizimo. Que seja. Ele que vá pro seu almoço que ela queria era descansar após ter feito a sua obrigação dominical.

Comungar não comungou. Primeiro tinha que tirar aqueles pensamentos da sua mente. Tinha que tomar cuidado, pois já havia quem reparasse sua ausência na fila da comunhão, mas pra isso tinha que se arrepender de desejar a morte do marido e isso ainda estava longe de acontecer. Queria sim que o ordinário enfartasse, mas pela aparência dele certamente seria um dos homens que Deus escolhera para ficar para a semente do mundo eterno e se assim fosse, só lhe restava orar para que ela não fosse à mulher escolhida para viver eternamente. Assim preferia morrer!

Berta tinha nos seus momentos de leitura seu único lazer. Sentou-se na cadeira reclinada, estirou as pernas em outra cadeira e afundou-se na leitura de Chico Buarque de Holanda. “Leite derramado” caiu em suas mãos por acaso. A filha de Alzira, sua vizinha, ganhara o livro de presente do novo namorado. Na véspera do natal veio mostrar o presente dizendo que ia terminar com o novato, devido ao mau gosto em dar presentes. Sheila era uma garota demasiadamente jovem e estava na fase de valorizar muito mais o barulho do que o silêncio. Somente quem aprecia a calmaria e o silêncio pode apreciar livros. Falou-lhe da sua insatisfação deste novo namoro, pois o moço; que não era tão moço assim; era “chegado” a atividades culturais: gostava de teatro, Caetano Veloso e Tom Zé. Não fazia uso de álcool e não gostava de festa de largo, por causa do barulho. Ao contrário de Sheila que adorava pagode e arrocha estilo musical muito comum na Bahia e que agregava a juventude na contemporaneidade. O choque cultural foi mais forte que os interesses da moça pelas condições financeiras do namorado. O namoro fracassou e Berta ganhou Leite derramado.

Seu primeiro pensamento ao pegar o livro foi que seria uma boa oportunidade esvaziar sua mente daqueles pensamentos pecaminosos, no entanto ao começar a leitura percebeu que o livro falava dela mesma. Poderia ter escrito aquele livro antes de Chico, ou será que o escritor contava ali a sua história que ouvira de um não sei quem que a conhecia. Devorou o volume e chorou.

 No livro a vida era mais efêmera do que Berta podia acreditar. Chorou de tristeza em solidariedade personagem do livro e por si mesma. Depois, chorou de medo. Medo de morre sem ter feito tudo o que realmente a deixaria feliz.

Ouviu o arrastar de chinelos de Joaquim, vindo em sua direção, rapidamente retirou as pernas da cadeira e consertou o corpo, enxugando as lágrimas que havia escorrido de seus olhos. Joaquim a olhou por uns instantes:

- O que foi? Está chorado Por quê? - E seguiu para a cozinha.

Berta sentiu a raiva tomar conta do seu corpo e pensou tentando descobrir, porque não tinha coragem de largar aquele homem, que mais parecia um fantasma em sua vida. Pensou nos filhos, nas comadres e vizinhos, no que diriam de sua atitude egoísta de largar o marido doente. Respirou fundo, colocou o livro sobre a mesinha e foi ao encontro de Joaquim. Percebeu que estava com uma aparência de cansado, já fazia alguns meses que tinha parado de trabalhar e agora zanzava pela casa arrastando aqueles chinelos que a filha lhe dera de presente.

 Percebeu naquele momento, que sentia muito mais raiva de si mesma do que de Joaquim. Queria ser egoísta e largar aquele homem, mas estava certa que sobraria para a sua filha, cuidar do pai doente e essa missão todos achavam que era dela, da esposa. Seria mesmo egoísmo querer ser feliz? Teria mesmo, pensava Berta, obrigações para com aquele homem ,que já dedicara décadas de sua vida, lavando, passando, cozinhando, fingindo um gozo como estratégia para o fim do ato sexual? Seria mesmo egoísmo querer ser feliz?

Ficou observando Joaquim caminhar de volta para o quarto segurando um copo de leite e um sanduíche. Comendo daquele jeito, não morreria nunca e ela teria que esperar pelo resto da sua vida por uma liberdade que nunca viria.

***

No dia seguinte terminou de arrumar a cozinha e lembrou que sua filha ligara avisando que viria no final da tarde para ver o pai. Resolveu avisar ao marido para que não fosse pego de surpresa. Enquanto enxugava a louça falou alto tentando adivinhar de que lado da casa estava o marido:

- Joaquim Lúcia virá passar o final de semana conosco. Joaquim...

 Berta foi em direção a porta da cozinha e viu Joaquim sentado no banco perto da janela, lugar mais fresco da casa, após o sol do meio dia.  Todos os dias ele insistia em tirar um sono sentado no banco de madeira, recostado no batente da janela do quintal.  Chamou o marido com impaciência.

Dessa vez, não ouviu o gruído do marido reclamando por ter sua soneca interrompida. Parou no meio da cozinha e sentiu um medo crescendo dentro de si. Não quis olhar e nem pensar na possibilidade de que o marido pudesse estar morto. Estava cansada de planejar sua vida para quando estivesse livre de Joaquim. Havia desistido! Certamente iria tocá-lo e ele reagiria como de costume, fazendo-a sentir-se como uma estúpida. Berta tinha chegado à conclusão que Joaquim sabia ler seus pensamentos mais profundos e sabia do seu desejo escondido de que ele morresse.

Virou-se devagar constatando que ele continuava imóvel. Caminhou lentamente em direção à janela esticando a mão para tocar no ombro do marido. Joaquim costumava ficar sem camisa, vestindo apenas uma bermuda e sandálias rasteiras deixando a exuberante e brilhosa barriga à vista. Ele não tinha sido sempre assim. Berta lembrava-se daquele homem quando jovem, cabelos negros, olhos cor de mel um sorriso irônico nos lábios. Na época a ironia parecia mistério e apaixonou-se, não por ele, mas pelas possibilidades de um futuro cheio de mistérios. Depois do casamento, Joaquim mudou a ironia dos lábios pelo cinismo dos gestos. Traições, noites fora de casa, metade da renda familiar gasta com bebidas, cigarros e mulheres.

 Joaquim orgulhava-se de nunca ter dormido com outra mulher por mais de duas vezes. Adorava as tradicionais casas noturnas, conhecidas como “brega” situada nas áreas periféricas da cidade. Não era homem de ter amante, pois respeitava “a patroa”. Patroa era como se referia a Berta quando se gabava com os amigos. Dizia que mulher na rua é pra só variar o prato de casa. Durante muitos anos ela ouvira estas frases da cozinha enquanto fritava no óleo a tradicional carne do sol, para a hora do intervalo do jogo entre os amigos nas tardes de domingo. Não percebia que era apenas uma peça de um tabuleiro de xadrez numa sociedade ainda tão machista. Seu papel era ser esposa e mãe e aprenderá isso com sua mãe, que aprendera com sua avó. Fora uma boa mãe e uma boa esposa, mas não suportava mais viver daquele jeito: um dia após o outro, esperando o nada!

 Tocou o ombro de Joaquim e sentiu um calafrio entrar pelos seus dedos e tomar o seu corpo.  Era como se há muito não tivesse sentido a luz do sol, presa em seu casulo. Percebia as asas da liberdade agigantando-se no dorso da borboleta pronta para a metamorfose. Mais uma vez chamou o marido pelo nome, notando a pele pálida do defunto, exatamente como imaginara que ficaria depois de morto. Falou o nome dele em voz alta, dessa vez como se colocasse um ponto final em sua espera e não havendo resposta, se dirigiu para o aparelho de telefone na estante da sala. Tirou o telefone do gancho e antes de discar, devolveu-o a posição inicial.

Naquele momento Berta só pensava como era grata a Deus por ter alcançado aquela graça. Somente assim estaria imaculada diante das comadres, dos filhos, dos netos, da igreja. Ela sofrera todas as dores de ter se tornado um ninguém. Seu coração palpitava de alegria e não sentia mais culpa. Não conseguia reprimir o sorriso nos lábios e deu adeus a Joaquim. Respirou fundo, não havia pressa. Agora tinha o futuro todo pela frente. Deitou-se no sofá, fechou os olhos e ainda com  um sorriso nos lábios, entrou num estado de torpor que a fez ter a sensação de estar flutuando .  Um alarme dentro de si mesma a fez despertar do estado de torpor. Não era hora de descanso, tinha muito ainda o que fazer. Levantou-se, alisou as dobras do vestido com a sensação de missão cumprida.Andou em direção ao espelho da sala, alinhou os cabelos e disse para o próprio reflexo: - Agora estou livre para viver.